RO, Sexta-feira, 26 de abril de 2024, às 22:53



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Casas que não existem mais faziam do Triângulo um pedaço do Caribe em Porto Velho

PORTO VELHO –  O Triângulo fica na orla, é um bairro ribeirinho e sempre foi valorizado pela paisagem e pela proximidade com o centro, ouço dizer desde o final dos anos 1970 o arquiteto Luiz Leite de Oliveira, presidente da Associação dos Amigos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (Amma). No entanto, as tradicionais moradias de caribenhos desapareceram. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade: nem retratos na parede elas são mais. E isso dói.

Cadê os retratos? O repórter fotográfico Kim-Ir-Sen Pires Leal têm alguns e irá expô-los em seu futuro livro de fotografias mostrando Rondônia nua e crua entre os anos 1970 e 1980. Com alguma ansiedade, nós todos aguardamos por esse sublime momento em alguma biblioteca ou centro cultural da cidade.

“Foi um deliberado plano de despejo”, acusou em 2012 o arquiteto Luiz Leite. Hoje ele é um Quixote que ainda move e perde a calma ao ver sua cidade descaracterizada no âmago do seu nascedouro, a orla do Rio Madeira.

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Era linda a casa tradicional do Triângulo, com molduras na parede, quadros e calendários

“Das que ficavam em pé na sanha impiedosa do SPU, da Prefeitura e do pouco caso do Iphan com tradição histórica, pouco depois iam abaixo patrimônios notáveis do povo porto-velhense, entre eles a própria sede da Associação dos Remanescentes das Famílias Tradicionais e Pioneiros do Bairro Triângulo”, comentava o arquiteto.

Enfim, a resistência teve dias, meses e anos contatos desde os anos 1980, período em que o panorama imobiliário começa a se alterar, sacrificando incrivelmente até o Cemitério da Candelária, onde repousavam ossos de milhares de construtores anônimos da extinta Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Se nem o cemitério respeitaram, imaginem o restante…

Emblemática foto de Kim-Ir-Sen: a barbadiana na janela

“Em cima de palafitas, ali viviam negros barbadianos e caboclos ribeirinhos, a exemplo de outras pequenas Vilas do Baixo Madeira”, conta Luiz Leite em lágrimas.

Conforme ele previa, a “a agonia do bairro” não veio com mudanças ou remanejamento oficial da população do Triângulo. “Fora, porém, determinada por centenas de folhas de documentos judiciais e do município”, queixa-se. O que eliminou, obviamente, a série de denúncias respaldadas em leis ou na história, todas ignorados por autoridades federais em Porto Velho e Brasília.

SEMINÁRIO DE 1980

O bairro surgido desde a colocação dos trilhos da Madeira-Mamoré surgiu de um complexo triangular, “uma rótula de ligação para que as locomotivas penetrassem a leste, nas proximidades dos igarapés, onde ficavam as caixas-d’água abastecedoras dos tenders (vagão acoplado) das locomotivas.

 

“Quando ainda frequentava os bancos escolares, a atual geração de políticos, membros do Ministério Público, do Poder Judiciário, e alguns técnicos a serviço desses órgãos em Brasília não percebia o que ocorria na margem do Rio Madeira”, diz o arquiteto inconsolável. Refere-se principalmente ao Seminário de Preservação da Madeira Mamoré, em 1980, cuja decisão mais importante foi a reativação da ferrovia e a conservação do Bairro do Triângulo.

Por ironia do destino, descaso de diversas autoridades e até por desconhecimento da história regional, há quase 40 anos o bairro já vem sendo praticamente despejado. Não poupa as usinas do Madeira e os administradores municipais:

“Desde Roberto Sobrinho, contam-se nos dedos culpados, inclusive parlamentares estaduais e federais que tinham por dever e obrigação virar o disco do município bafejado pelo dinheiro das compensações oferecidas pela construção da Hidrelétrica de Santo Antônio. “Recursos que deveriam ser usados na restauração, cumprindo-se a decisão do seminário de 1980, na verdade serviram para a destruição do bairro histórico, com a consequente expulsão dos seus infelizes moradores; um saque do pouco que sobrou do original”, acusa.

OPERADORAS DE MÁQUINA DE ENGOMAR

A escritora e acadêmica de letras Yêdda Borzacov descreveu a elegância do antigo bairro que recebeu famílias notáveis no início do século passado.

“As mulheres tinham o hábito de usar chapéus de tecido engomado e o conservavam até dentro de casa ou nos locais de trabalho. Empregavam-se como domésticas em casas de família ou no Hospital da Candelária, como operadoras de máquina de engomar e dobrar lençóis ou ainda, como cozinheiras.

Os caribenhos foram instalados em grandes barracões, construídos em uma colina ao sul do recém-nascido povoado, às proximidades de igapós, de um igarapé e do leito férreo, área atualmente ocupada entre o Cai N’Água, a avenida Rogério Weber e o bairro Triângulo.

Entretanto, não satisfeitos com as instalações concedidas pela empresa May, Jeckyll & Randolph, iniciaram a edificar suas casinhas visando a convivência com suas mulheres (somente a esses imigrantes, a empresa construtora concedeu o privilégio de trazer suas famílias). As casas tipo palafitas possuíam imensos quintais, locais onde plantavam árvores frutíferas e cultivaram hortas. Plantas ornamentais faziam parte da paisagem.

BARBADIAN TOWN

Essa vila de casas os manteve unidos e amenizou os conflitos culturais que a imigração provocou no grupo que ignorava totalmente o lugar aonde iria prestar serviços ferroviários. Emocionalmente presos à sua cultura originária, preservavam as atividades e valores, tais como: a religião evangélica, a língua inglesa, a musicalidade (arte predileta), o nível de escolaridade e a união familiar. Poucos imigrantes caribenhos assimilaram a cultura local, apesar dos contatos mantidos com a nova sociedade que cultivava costumes diversos aos seus.

O futuro bairro em formação recebeu o nome de Barbadoes Town, relata Júlio Nogueira, que visitou Porto Velho em 1912, enquanto o ferroviário Hugo Ferreira, chegando em 1913, sendo contratado como condutor de “motor-cars”, carro ferroviário que percorria diariamente o trecho compreendido entre Porto Velho-Candelária-Santo Antônio, galgando pelo seu trabalho eficiente outras funções até a sua aposentadoria em 1958, diverge de Júlio Nogueira e, ao se referir ao bairro, informa que o denotativo era Barbadian Town.

O nome dado em inglês, deveu-se ao fato de que a língua inglesa era a mais falada na época, inclusive toda a documentação da empresa construtora era escrita em inglês.

O povo chamava jocosamente o bairro de Alto do Bode, alcunha que se popularizou gerando controvérsias. Uma delas, narrada por Hugo Ferreira era em razão do forte cheiro de almíscar característico da raça negra. Certa ocasião, um nordestino brincalhão ao passar pelo bairro, exclamou ao sentir o odor: este bairro parece um Alto do Bode. A professora Eliza Johnson, filha do casal imigrante Elvira e Norman Johnson, nascida no bairro e onde passou grande parte da sua infância, discorda, e em entrevista concedida ao jornal Diário da Amazônia, em 2004, esclarece: “O que ocorreu é que o local era realmente alto, mas os nordestinos que também moravam na vila, não entendiam o inglês barbadiano, mantido como idioma oficial. Daí passaram a chamar as conversas de berreiro, barulho de bodes. Então surgiu o Alto do Bode.

Disciplinados, organizados e cultuando alto grau de cuidado corporal, usavam camisas de mangas compridas para se protegerem dos mosquitos e não estendiam as mãos para as pessoas que tinham feridas expostas. Quando eram convidados a almoçar ou jantar na residência de algum amigo não caribenho, levavam seus talheres e pratos, fato que levava muitos trabalhadores a chamá-los de orgulhosos e arrogantes.

Entretanto, o contingente que permaneceu em Porto Velho após o término da ferrovia foi o dos barbadianos, enquanto os imigrantes de outros países, retiraram-se apressadamente diante da crise gerada pela queda do preço da borracha. Os caribenhos optaram por continuar a viver na cidade que aprenderam a conhecer e amar, continuando com os seus trabalhos para o desenvolvimento sociocultural e econômico de Porto Velho, marcando decisivamente uma página da nossa história.

A educação dada aos filhos era rígida, severa e nas festas que realizavam, apresentavam números de músicas eruditas tocadas ao piano, violino e bandolim. A poesia também aparecia nesses saraus, ocasião que as exímias quituteiras ofereciam o “great cake”, bolo que tinha como ingredientes cerveja preta e frutas cristalizadas, sempre servidas com chocolate quente, que era feito com o cacau colhido dos seus quintais. Para quem preferisse uma bebida gelada, havia o aluá feito com as cascas do abacaxi fermentado com água, colocado para receber o orvalho nas noites de plenilúnio.

Os seus descendentes ainda são presenças marcantes em nossa sociedade, integrantes das famílias Maloney, Julien, Shockness, Jommy, Allen, Blackman, Johnson, Denis e Welles, dentre outros, acompanhando o crescimento da cidade e fortalecendo com a criação de organismos de cultura – corais e peças teatrais, o papel de propulsoras do movimento cultural.
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MONTEZUMA CRUZ
Fotos: Kim-Ir-Sen Pires Leal

 






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