RO, Sexta-feira, 19 de abril de 2024, às 4:16



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Jornalistas perdem o gosto pela leitura de livros

MONTEZUMA CRUZ

Simples, né Lúcio Flávio? Quem não os lê, perde fragorosamente. No mundo de uma Redação em que o Waths App e a bunda na cadeira não são tudo de bom, o nocaute dói muito mais. Com raríssimas exceções, parece reinar a sensação do desprezo cada vez maior pela leitura de um bom livro.

Preciosos Manuais de Redação há tempos deixaram mesas e estantes. Somos tão fiéis ao dia a dia que não teríamos 15 minutos para ler A Ferrovia do Diabo, de Manoel Rodrigues Ferreira? Ou Mad Maria, de Márcio Souza?

Ouve-se muito a desculpa: “Ah! não tenho tempo”. Ela vem acachapante, fazendo o sujeito não esboçar qualquer reação, beirando o tolo conformismo.

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Aproveitava as noites de Maringá (PR) para ler “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, concluindo depois de um ano, em 2006. Na ocasião, eu era editor de internacional no extinto O Diário do Norte do Paraná. De volta a Brasília, em 2007 li A sangue frio, de Truman Capote e Anjos e Demônios, de Dan Brown.

No Acre, em 2010, dei de cara com dois livros de Euclides da Cunha, preferindo: Um Paraíso perdido, e de José Potyguara li Terra caída.

Em 2012, quando saía à noite da Redação do Correio do Estado em Campo Grande (MS) após o fechamento da edição diária com Ico Victório, lia capítulos de Gay Talese, cujas quatro histórias no livro Vida de escritor me chegaram tarde, porém, a tempo de apreciá-las e de tirar muito proveito de cada uma.

Na sequência, atendi anterior recomendação do falecido companheiro de A Tribuna e O Guaporé, Paulo Queiroz, lendo Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques. Pensei comigo: antes tarde do que nunca. E assim fui caminhando até encontrar J.J. Benítez, cujo “Caná 9”, com mil páginas, me desafiam a cada 24 horas.

Em 2015, o colega Marcos Souza, em Porto Velho, instigou-me a ler Norman Mailer: Os exércitos da noite. Mais um que não havia lido. Em 2007, o jornalista Lúcio Flávio Pinto escrevia um texto em seu blog, tratando justamente do aprendizado com esses senhores.

A todos, inclusive a mim, repito: corram às bibliotecas, escolham, aprendam e se libertem da boba mesmice que teima nos perseguir.

Jornalista ou escritor (e vice-versa)

LÚCIO FLÁVIO PINTO

Comecei no jornalismo profissional em 1966. Foi nesse ano que Truman Capote lançou A Sangue Frio, uma reportagem sobre fato real escrita em linguagem literária, sem submissão às regras do jornalismo, para caber num livro de bom tamanho. Esses ingredientes compõem uma salada ou miscelânea batizada ora de “novo jornalismo” ora de “jornalismo literário”.

Foi um dos momentos mais fecundos da cultura do século XX, quando excelentes escritores saíram da literatura para o jornalismo ou seguiram caminho inverso, se engajando no jornalismo. Ficou muito difícil enquadrar o que faziam num estilo, numa escola ou num ofício. Tal enquadramento torna-se ocioso ou inútil quando há tanta criatividade em ação.

A geração à qual pertenço aprendeu a usar o rigor na apuração dos fatos, mas não se enquadrou na forma da narrativa ou descrição dos fatos apurados que nos quiseram legar, ou impor. Os “novos jornalistas”, “jornalistas literatos” ou “literatos jornalistas” foram nossos guias nessa travessia, que podia conduzir ao inferno, ao purgatório ou ao paraíso (este, quando possível, fugaz).

O maior desses guias morreu no dia 10 de novembro [de 2007] aos 84 anos, de insuficiência renal, nos Estados Unidos: Norman Mailer. Já li necrológios suficientes para me abster (e poupar meu leitor) de qualquer análise mais pretensiosa, ou das que estão em moda: pré-congeladas, basta colocá-las no forno de micro-ondas e servi-las para consumo insosso. Tanta fabulação foi produzida acerca desse cruzamento entre literatura e jornalismo que recomendo ao leitor algo bem simples e nutritivo: ler Os Exércitos da Noite, cuja primeira – e correta – tradução em português foi incorretamente apelidada de Os Degraus do Pentágono.

Norman Mailer era mestre em aberturas e primeiros movimentos. O lide (lead) de Miami e o Cerco de Chicago foi o mais criativo que já li na minha vida, por isso mesmo sendo exemplar anti-lide. Com um parágrafo sobre as origens de Miami, onde o Partido Democrata realizava sua convenção visando a presidência da república, ele nos poupou de páginas de xaropada extraídas de pastas de clippings. Resumiu a especulação imobiliária que resultou nessa Veneza do hiperbólico pragmatismo americano a um estourar de champanhe e ao cortar de fita de inauguração.

Tempo presente, terreno precário

O livro sobre a manifestação de protesto contra o Pentágono, no auge da guerra do Vietnã, tinha que se intitular mesmo exércitos da noite. Mailer o inicia reproduzindo uma nota publicada por Time, modelo não superado da revista semanal de informações que se espalhou pelo mundo. Com ironia e sarcasmo, o jornalista que redigiu a nota sugeriu que Mailer estava completamente bêbado quando subiu ao palco para fazer seu discurso, na véspera do avanço dos pacifistas sobre o templo de guerra dos EUA, e que disse besteiras, além de ser inconveniente. Ou seja: era um típico representante da intelectualidade decadente, que agia irresponsavelmente contra a guerra.

Mailer não escondeu que estava bêbado, que disse besteiras e que causou incômodos. Mas sua reconstituição mostra que a realidade é muito mais complexa do que estava disposto a reconhecer (ou mesmo a perceber) um jornalista da Time. Sob o guarda-chuva da objetividade se abrigavam os preconceitos e prevenções ideológicas da revista. Mesmo que estivesse errado, Norman Mailer não podia ser reduzido àquela dezena de linhas reducionistas do texto da revista.

Esses escritores-jornalistas nos ensinaram a observar, e nos forneceram expressões e modos de arrumar palavras para narrar, reconstituir, descrever o que observávamos, aproximando-nos o mais que pudéssemos da riqueza da vida como ela é, algo tão amplo e profundo que exige do jornalista qualidades que só a literatura pode lhe fornecer. A diferença está em que, uma escala abaixo na hierarquia dos valores, não podemos nos permitir ir à ficção, adicionar, criar, inventar, domínios que só estão facultados ao escritor.

Norman Mailer foi um grande jornalista e um escritor brilhante. Fez pelo jornalismo, com seus colegas de ‘novo jornalismo’, o que não conseguiu fazer pela literatura: uma revolução. Por isso, nós, que somos apenas jornalistas, somos tão gratos a ele, a Capote, Tom Wolf, Gay Talese, Robert Fisk, Ryszard Kapuscinsky e a uns poucos mais.

O nosso mundo é aqui na terra, no tempo presente, no terreno precário. O dos artistas é nas estrelas, sem limite, é todo o céu da criação humana. Mailer teve um pé aqui e outro lá, mas o pé terreno é o que ficou e gerou frutos, ainda que menores e sem brilho, como somos nós.

O JT circulou de 1966
a 2012 e marcou
uma geração de jornalistas e leitores
com seu estilo textual e fotográfico.

No dia 30 de outubro de 2012 a última edição
foi às bancas. Um clássico jornal diário literário.

 






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