Cícero Moura

PORTO VELHO – Apesar de ser um dos mais novos estados da federação brasileira, Rondônia tem instituições modernas, cuja atuação vanguardista acaba virando exemplo para o Brasil, ou criando jurisprudência como se diz no linguajar jurídico. O ministério Público de Rondônia, por exemplo, criado pela primeira Assembleia Constituinte, teve seu escopo copiado pelos deputados federais constituintes e está consignado no modelo de atuação do MPF que emergiu da Constituição de 1988.  Essa é uma tendência que vem se firmando ao longo dessas quatro décadas de atuação, muitas vezes se antecipando a entendimentos e avanços que chegam em outros estados depois.

Nesta reportagem especial, o jornalista Cícero Moura conta a trajetória do professor Thonny Hawany (nome social) que enfrentou o preconceito e a discriminação e ousou entrar com pedido de união homo afetiva ao Ministério Público de Rondônia, quando ainda não havia essa previsão legal, depois reconhecida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF)

Foto: Arquivo pessoal

                                                     DESAFIO

Quando Thonny Hawany (nome de batismo Antônio Carlos da Silva Costa de Souza) veio morar em Rondônia já sabia que várias seriam as dificuldade de adaptação. Mas era uma excelente oportunidade de trabalho e não havia como deixar de lado. No campo profissional isso não seria nenhum problema, a maior dificuldade poderia estar na convivência com as pessoas. Não que Thonny  seja anti-social, nada disso, a questão era sua preferência sexual.

Homossexual assumido ele sabia que o Norte, principalmente Rondônia, é um estado famoso pelo conservadorismo e o grande número de evangélicos que aqui residem. Um movimento religioso que tradicionalmente é conhecido por aceitar com restrições  os indivíduos que têm preferência por pessoas do mesmo sexo.

Formado em Letras, em dezembro de 1994, na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde residia, Thonny foi avisado por uma amiga de Rondônia que uma grande instituição de ensino estava sendo criada em Porto Velho. Em janeiro de 1995, já habilitado para lecionar Língua Portuguesa e Inglês, o novo professor mandou currículo. Em seguida recebeu telefonema avisando sobre a aprovação do currículo e, no mês de fevereiro, já estava contratado para lecionar nas unidades da instituição de ensino em Jaru e Ouro Preto do Oeste.

Foto: Arquivo pessoal

O bom desempenho como professor lhe abriu portas e em 1999 Thonny foi contratado por uma faculdade de Cacoal, onde permaneceu por quase 15 anos. Desde a chegada em Rondônia, até seu retorno  a Bahia, Thonny nunca escondeu que era gay, embora sofresse descaso, preconceito e críticas até mesmo de pessoas LGBT por defender com veemência seus direitos.

 

                                                      ENTIDADE

Inconformado com a rejeição que havia para com as pessoas de opção sexual diferente dos padrões tradicionais, Thonny juntou um grupo de pessoas e fundou em 2007 o Grupo Arco-Íris de Rondônia (GAYRO) com atuação local, regional e estadual.

Foto: Arquivo pessoal

A iniciativa e exposição lhe trouxeram vários problemas e dificuldades. A parte mais complicada, segundo ele, foi a demissão repentina da universidade onde trabalhava. “Me disseram que era contenção de gastos, mas é claro que isso era uma desculpa. O preconceito sempre foi na forma velada, ainda que eu quisesse não conseguiria comprovar isso”, explica.

Thonny afirma que não quis acionar a empresa para não prejudicar outros homossexuais que preferiram ficar calados para não correr risco de também perder o emprego. Ele diz que era bem conhecido na região e respeitado como professor, garante que nunca escondeu sua sexualidade, mas também nunca havia falado abertamente sobre o tema  como passou a acontecer após se tornar militante da causa gay.

Foto: Arquivo pessoal

                                                    DEFESA

O professor relata que com a criação do Grupo Arco-Íris, registrado legalmente, começaram a chegar inúmeras denúncias de violência contra LGBTs. Os casos, com acompanhamento de advogados, iam sendo repassados para as delegacias e Ministério Público. Isso deu visibilidade aos homossexuais excluídos e discriminados. “Nós aproveitamos a abertura dada pelo Governo Federal na época e avançamos participando de conferências locais, regionais, estaduais e nacionais. LGBTs de todos os lugares do Estado passaram a ter uma voz representada pelo GAYRO”, enfatiza Thonny.

Foto: Arquivo pessoal

O professor destaca que como não havia apoio do poder público municipal em Cacoal, nunca foi possível fazer uma parada para ampliar a visibilidade. Mas a união dos envolvidos permitiu a realização de eventos menores e a criação do Cacoal Rainbow festa que teve mais de 10 edições. Era uma festa anual que reunia os LGBTs da capital e de muitas cidades do interior.” Era um momento de diversão e também para esquecer um pouco a luta diária contra a opressão e ainda fazer militância. Era muito bom sentir que estávamos fazendo algo por nós e pelos semelhantes”, destaca emocionado.

                                                             ADOÇÃO 

A defesa dos direitos dos LGBTs era uma bandeira sem limites para o professor Thonny. Ele queria muito mais, inclusive mostrar que todas as pessoas, independente de suas opções sexuais, poderiam ter direitos como qualquer cidadão.

Foto: Arquivo pessoal

No ano de 2000, na cidade de Guanambi, na Bahia, ele adotou o primeiro filho, Jefferson Wagner Silveira e Silva, com 20 dias de idade. Foi uma adoção monoparental, já que na época Antony não era casado.

A adoção monoparental é quando um único adulto adota uma criança ou um adolescente (ou um grupo de irmãos). Essa modalidade já é prevista por lei desde o ECA, de 1990.

Qualquer homem ou mulher maior de 18 anos e com uma situação socioeconômica estável, ou seja, capaz de se manter financeiramente e manter uma família pode ter o direito a adoção. A pessoa precisa também ser pelo menos 16 anos mais velha do que quem será adotado. Não é preciso ser casado. Viúvos, divorciados e solteiros também podem adotar sem problemas.

                                                           ROMANCE

A felicidade de ter um filho e criá-lo com ensinamentos religiosos, morais e éticos faz com que Thonny compartilha em suas redes sociais o crescimento do filho. Inúmeros amigos e até desconhecidos mandavam mensagens elogiando sua postura e conduta em defesa dos LGBTs e da possibilidade de qualquer pessoa ter uma vida digna e respeitada.

Em novembro de 2010, em uma conversa descontraída pela internet ele conheceu Rafael (nome de batismo Darciano Costa de Souza Silva). Foi amor à primeira vista. Apesar da diferença de quase 20 anos de idade, ambos compartilhavam os mesmos pensamentos sobre família e defesa de direitos.

Foto: Arquivo pessoal

Thonny destaca também que outro fator que estimulou o romance, foi o fato do filho dele, Jefferson, ter simpatizado com Rafael desde o primeiro encontro. “Jefferson, que na época tinha 9 anos, adorou Rafael e passou a respeitá-lo como um segundo pai. Eles sempre tiveram uma relação que fica entre a consideração de pai e filho, ou de irmão e irmão, ou ainda de sobrinho e tio”, enfatiza Thonny.

                                                       CASAMENTO

Um ano após o início do namoro, a felicidade da família sem completou com a união estável de Thonny e Rafael. Logo em seguida surgiu decisão do Supremo Tribunal Federal legalizando a união homoafetiva. O que já era bom podia ficar ainda melhor para o casal e eles resolveram entrar com pedido de casamento junto ao Ministério Público de Rondônia.

Em janeiro de 2012 o sonho virou realidade. O MP concedeu parecer favorável ao casamento que acabou sendo deferido pelo juiz da 1ª Vara Cívil da Comarca de Cacoal, Àureo Virgílio. Em 3 de março de 2012 Thonny e Rafael se casaram, acontecendo assim a primeira união civil homoafetiva no Estado de Rondônia.

Foto: Arquivo pessoal

A promotora Lisandra Vanneska, do Ministério Público de Rondônia, diz que o parecer favorável  à  união de Thonny e Rafael foi apenas uma legitimação da família, do amor e do afeto. “O que o MP fez dez anos atrás tem importância histórica por alçar as pessoas as suas cidadanias iguais, transformá-los em cidadãos iguais trazendo dignidade às famílias homoparental.

Foto: Arquivo pessoal

Lisandra destaca ainda que se sente muito feliz por ter ajudado a conceder à família do Thonny o direito pleno a felicidade. Pontua que não foi uma decisão simples, observando que em 2013 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) teve que atuar, por exemplo, na obrigação dos cartórios em fazer os casamentos. Havia resistência na realização de casamento de pessoas do mesmo sexo.

A promotora argumenta que o assunto família homoafetiva não é tão simples, mesmo com todos os direitos já conquistados. Ainda existem barreiras que só são sobrepostas com decisões do judiciário. “Hoje ainda existem dificuldades na Receita Federal, por exemplo, que não reconhece e não permite colocar nomes de duas mães ou dois pais no cadastro da Receita Federal”, enfatiza.

Lisandra Vanneska elogiou o  juiz Àureo Virgílio pela tranquilidade em deferir o pedido do casal baseado nos direitos que ambos tinham. “Dr. Àureo teve uma sensibilidade inquestionável ao observar o afeto, a felicidade e o amor que existia entre o casal, sentimentos que não precisavam ser escondidos. A decisão propiciou expor isso de forma legítima e assegurada”, finaliza a promotora.

                                                       SIMPLICIDADE

O juiz Àureo Virgílio diz que o processo envolvendo o pedido de Thonny e de Rafael não teve audiência, tudo ocorreu administrativamente com o uso de ofícios e requerimentos. O juiz aponta que mesmo antes da decisão do STF, ele entendia que o direito homoafetivo já era algo consolidado.

Foto: Arquivo pessoal

Segundo o magistrado, havia um requerimento de duas pessoas capazes e idôneas e com um parecer favorável do MP. Era o necessário para decidir. O juiz resume sua decisão, destacando que não existe dificuldade para conceder o direito a quem merece.

                                                 FAMÍLIA MAIOR

Com todos os direitos garantidos pela Justiça, Thonny e Rafael seguiram sua trajetória  de vida celebrando a união e família. Após 5 anos casados, foi a vez de Rafael manifestar o desejo de adotar uma criança. Queria também ter a experiência de ser pai de um bebê. Thonny entendeu o desejo do companheiro. Eles procuraram a Justiça e entraram em uma lista nacional de adoção.

Foto: Arquivo pessoal

Passado um tempo, o casal foi avisado pelo Juizado da Infância e da Adolescência de Porto Velho que era o primeiro da fila que havia na Casa do Bebê da capital. Não demorou muito para que Maria Vitória Costa de Souza Silva, com 8 meses, entrasse na família e fosse registrada como filha dos pais: Thonny Hawany e Rafael Hawany (nomes sociais que ambos utilizam).

Foto: Arquivo pessoal

A sensibilidade do Ministério Público de Rondônia e a determinação de Thonny Hawany  são considerados exemplos para quem desejava  fazer valer seu direitos, mas tinha receio de expor sentimentos. Foi preciso a certeza do amparo judicial para que tantos outros casais pudessem também viver à vida sem a necessidade de se esconder.

Foto: Arquivo pessoal

Após 10 anos da primeira união homoafetiva de Rondônia, os números de casamentos entre pessoas do mesmo sexo no Estado  ainda são muito tímidos, mas já representam um enorme avanço se for levado em conta o perfil conservador da população rondoniense.

De acordo com Estatística de Registro Civil do IBGE, entre os anos de 2013 até 2020 foram realizados no Estado de Rondônia,  75 casamentos entre pessoas do  sexo masculino e 103 do sexo feminino. O número é pequeno, se for levado em conta os dados reais de pessoas do mesmo sexo que mantém relação estável.

CÍCERO MOURA, para o www.expressaorondonia.com.br

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