A ciência, os cientistas, pesquisadores e professores sofreram ataques inéditos durante o governo Bolsonaro. Acusações que variavam do ofensivo ao ridículo, desde alegações de improdutividade e até as bobagens infantilizadas de universitários dançando pelados e fumando maconha nos campi.

É natural, portanto, que a eleição de um novo presidente traga esperanças e expectativas de que no próximo governo a ciência seja respeitada, tanto como prioridade para investimento, como na base de políticas públicas de saúde, meio ambiente e educação.

Professores e acadêmicos reunidos no laboratório do CBio da Universidade Federal de Rondônia

Cobrar que a expectativa se cumpra e alertar para desvios de rota é um ato de cidadania e de democracia. Sustentar esperanças diante de sinais contraditórios e na ausência de evidências positivas, afinal, é anticientífico. O governo que assumirá o Brasil em 2023 vem montando um aparato de transição — grupos de trabalho, consultores — cuja composição projeta, para sociedade, sua visão de futuro. É ingênuo imaginar que os vencedores do pleito de outubro não saibam disso e que a imagem não seja, portanto, uma foto de estúdio. E o fato é que, para esse retrato, a ciência ainda não foi convidada.

Como notou editorial da Revista Questão de Ciência, o conceito de “ciência” aparece no discurso da vitória do presidente eleito, a bordo da expressão “pesquisa científica”, apenas uma vez, no contexto da preservação da Amazônia. A palavra “fé” aparece duas vezes, “Deus”, oito, e “Jesus Cristo”, uma. No apelo à união nacional, Lula disse: “Vou precisar de todos: partidos políticos, trabalhadores, empresários, parlamentares, governadores, prefeitos, gente de todas as religiões”. “Professores”, “cientistas”, “universidades”, “pesquisadores” ficaram de fora.

Alimentação, saúde, moradia e educação apareceram como prioridades no discurso de Lula. Todas essas áreas dependem de ciência, e para aproveitar ao máximo o que o conhecimento científico pode oferecer, é preciso incluir cientistas nas equipes encarregadas de atender a tais prioridades.

Também requer incluir profissionais de diferentes especialidades, origens, cores, etnias, e classes sociais: a capacidade de enxergar as dificuldades e imaginar soluções de um professor doutor paulistano e de uma liderança quilombola para, por exemplo, uma baixa cobertura vacinal provavelmente são muito diferentes — e ambas necessárias e complementares entre si.

Mas a equipe de transição de saúde, composta por cinco médicos, homens, brancos, será assessorada por uma equipe consultiva também composta por médicos, homens, brancos, quase todos paulistanos, com atuação predominante em hospitais privados de elite.

As especialidades destes profissionais, embora obviamente capacitados e competentes, não incluem as áreas de saúde pública, epidemiologia, enfermagem, medicina de família, vacinação, tratamento de dados, essenciais para estabelecer diretrizes e prioridades de atuação.

Campanhas de vacinação serão prioritárias, anunciou Luiz Inácio Lula da Silva em campanha

O presidente eleito já anunciou que campanhas de vacinação serão prioritárias, e que serão retomadas já na primeira semana de janeiro. Seu planejamento quase com certeza dependerá da equipe de transição. Como fazer isso sem incluir alguém com experiência no Programa Nacional de Imunizações, ou da Sociedade Brasileira de Imunizações? Ainda há tempo, e espero que estes profissionais sejam ouvidos.

Também espero que o novo Ministério da Ciência possa contar com nomeações técnicas, de pessoas comprometidas com o financiamento e o respeito à ciência, e não seja usado como moeda para pagar pedágios ideológicos ou débitos políticos.

Manter os atos de representantes eleitos sob escrutínio é tão importante quanto o voto. Unção pelas urnas não confere infalibilidade. E equipe de transição não é defunto fresco, de quem é falta de educação falar mal.

NATÁLIA PASTERNAK
O Globo

Deixe uma resposta