RO, Domingo, 08 de junho de 2025, às 6:04






Sociedade da repetição – Por Rafael Ademir de Andrade*

Rafael Ademir*

PORTO VELHO  – Não consigo parar de pensar no texto “Entre Quatro Paredes” de Sartre (1). Após descrever o contato inferno de pessoas que se odeiam, aparece a brilhante frase “o inferno são os outros”. Também não me sai da cabeça a perspectiva adorniana (e horkeiminiana (2)) sobre a sociedade contemporânea: de que a sociedade em que vivemos, apesar de uma aparência de liberdade total e de ausência de regras/padrões, é marcada por cada vez mais numerosos e eficazes instrumentos de controle que não são controles repressivos, mas sim ideológicos (Althusser (3)) ou subjetivos-maquínicos (Guattari (4)), ou seja, não há nenhuma arma te obrigado a obedecer, você obedece porque quer, porque ama, porque se encontra nisto.

Sintetizando este grande número de vozes em minha cabeça com a minha sensação freudiana de angústia afirmo que vivemos a infeliz, infernal, angustiante e adormecida sociedade da repetição. De onde veio tal ideia? Você por acaso já olhou os reels do instagram? Aquele que é capaz de criar algo “novo” (muitas aspas) é logo imitado por milhões de indivíduos em busca de um lugar ao sol. Repetindo, repetindo, corpos idênticos, vozes idênticas, mentes idênticas caminham sem descanso para um abismo onde se depositará qualquer capacidade intelectual, criativa ou identitária em um abismo monstruoso de insanidade assistida e incentivada.

Mais recentemente o instagram passou a mostrar quais áudios fazem mais sucesso para que você possa colocar sua imagem (ou não) nele, passou a mostrar também em uma tela apenas algumas pessoas repetindo a mesma inútil repetição. Os podcasts nem sequer disfarçam: abandonam a máscara de bate papo para colocar o mesmo, e que mesmo interessante se torna enfadonho, convidado em uma dezena de podcasts que possuem mais audiência quanto mais os condutores do programa se fazem, ou são, de ignorantes.

Se Adorno e Horkheimer estivessem lendo nossa sociedade talvez trocassem a imagem (2) das casas dos subúrbios norte americanos (repetitivas, iguais, coloridas) pelas danças das redes sociais para ilustrar a repetição e a vitória da mesmice sobre a arte, a subjetividade e a capacidade criativa da sociedade. Imagine meu espanto ao saber que agora, nas festas, os jovens dançam como bonecos em linha o que vêem nas redes sociais e gravam, e colocam nas redes sociais.

A sociedade da repetição vai além das redes sociais, ela potencializa as ideologias massificadoras (o que é essencialmente o “trabalho” da ideologia) e suas verves violentas. Acostumados desde sempre a pensar de acordo com as massas (ou o rebanho), as pessoas agora encontram nas repetições/disparos das redes sociais formas de confirmar aquilo que pensam ter controle ou conhecimento, mesmo que não saibam como funcionam as coisas.

A sociedade da repetição é o que faz com que as pessoas tenham aquela velha e boa preguiça de saber. Somando isso a miséria galopante em que a classe média (especialmente seu estrato mais baixo) tem entrado nos últimos quatro anos, cada vez mais os golpes de pirâmide, os jogos como forma de ganhar dinheiro, as propagandas de “ganhe dinheiro assistindo desenhos” são mais presentes na sociedade, com denúncias quase semanais nos programas dominicais e nos programas de urubus carniceiros que recheiam nossas tardes da televisão aberta brasileira.

Entretanto é necessário afirmar, nada que estou percebendo aqui neste texto é essencialmente novo, tanto que outros sociólogos já perceberam isto de outras formas: sociedade de massas (2), sociedade que se desvanece (5) ou sociedade líquida (6). O fato é que a massificação das pessoas, o desvanecimento de estruturas sólidas em prol de uma super restrita classe social e a liquidez das relações sociais perpassa e reforça a repetição. O primeiro esmerilar de repetição foi sentido na revolução industrial e  o último na dancinha mais popular das redes sociais de hoje, que não será mais de ontem.

Outras aproximações da nossa sociedade foram previstas (ou profetizadas) por Adorno e Horkheimer(2): tudo que parece novo é logo descartado e não há sequer mais uma cortina de fumaça que vele as relações sociais.

Todos buscam a repetição, anseiam por elas, os advogados/médicos/professores ensinam uns aos outros a repetição como a única forma de alcançar seu “público”, os coachs ensinam como ter autoridade midiática mesmo que tal “autoridade” seja falsa – o fato é que quem está do outro lado da tela sabe que é falso e segue justamente porque aquela narrativa se encaixa em sua ideologia e, principalmente, em suas ilusões de um mundo melhor para ela ou para os demais.

As fotos, as danças, os carros, as lições de vida, os caminhos para a riqueza, tudo é falso. Vou dar um exemplo: recentemente ouvi em um podcast um médico famoso dizer que trabalha de domingo a domingo e que cobra 2000 reais por consulta e por isso não descansa. Isso foi o suficiente para que muitos de meus conhecidos, que ganham de 6,25 a 18,75  reais a hora (calculando de acordo com o salário mínimo) passarem a trabalhar de domingo a domingo. Mal sabem que sua hora de trabalho sequer pagaria uma hora de trabalho do médico. O fato aqui não é a narrativa do médico nem sua remuneração, a questão é a repetição cega, alienada e que no fim causa adoecimento.

Sem saber como funciona a riqueza e sua criação, pois não sabem nada de economia (liberal, marxista, de qualquer corrente que seja) acabam caindo no conto do vigário: pirâmide, papo motivacional de coach, propaganda paga. Ao passo que os “segredos da riqueza” são cada dia mais evidenciadas pelos coachs, a concentração de renda no Brasil e no mundo só aumenta, ou seja, os 0,5% cada vez mais ricos e os demais cada vez mais pobres. O povo padece, obedece, idolatra por falta de conhecimento, creio que isso está, de outra forma, em vários livros sagrados (e eu devo ter pego de lá).

Este breve ensaio é para descrever a forma como eu penso sobre algumas coisas e penso que posso desenvolver tal pensamento a posteriori. A repetição me incomoda, eu só consigo ser professor e consultor pois nestas duas atividades estou criando diariamente, um novo projeto, uma nova metodologia de aula, um novo debate… Ao passo que quem cria é prejudicado (vide Felipe Castanhari do Canal Nostalgia) os ignorantes que fazem dancinhas são chamados para serem vereadores e deputados.

Brasil, você merece. Nós merecemos!

*É sociólogo, mestre em Educação e doutor em desenvolvimento regional e meio ambiente pela Universidade Federal de Rondônia. Professor e pesquisador.

Bibliografia

  1. O Inferno são os outros, peça teatral de Jean Paul Sartre
  2. Indústria Cultural e Sociedade, livro de Theodor Adorno e Max Horkheimer
  3. Aparelhos Ideológicos de Estado, livro de Louis Althusser
  4. As Três Ecologias, livro de Félix Guattari
  5. Tudo o que é sólido se desvanece no ar, de Marshall Berman
  6. Conceito, disposto em vários livros, de sociedade líquida de Zygmunt Bauman
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