RO, Sexta-feira, 09 de maio de 2025, às 15:58






Desde o auge dos tempos que garimpeiros ‘bamburravam’ no Madeira até os dias atuais, a dor quase invisível das mulheres que abortam

MONTEZUMA CRUZ

PORTO VELHO – Se na Capital a entressafra do sexo em 1979 fazia aumentar o ibope da novela Pai Herói, da TV Globo, quem se dispusesse a ‘comer pó’ encontraria alguma opção no interior do território. Não era muito, pois até lá a fama dos garimpeiros do Madeira havia chegado, haja vista a superlotação feminina dos ônibus que demandavam a Porto Velho.

Cansadas da longa espera, as “pastoras” da Capital começavam a procurar melhores ares em Ariquemes, Cacoal e Ji-Paraná. “Pastoras”, repito, era designação às mulheres que sondavam ambientes e organizavam mulheres para o trottoir e as noitadas na zona boêmia.

A decoração da Boate Copacabana, no Bairro do Roque, só mudaria na pintura das paredes: saíram sereias e paisagens andinas para dar lugar a tigres verdes em tom escuro. E ficariam afixados os preços das bebidas pintados em letras irregulares e coloridas.

Canções dor de cotovelo, bolerões e carimbós que faziam lotar a pista de cimento vermelho passavam a dividir o tímido espaço com o hit parade de discotecas, onde o reggae “Não chore mais” (Don’t let me cry) pontificava soberano. Mas a pista não mais se enchia de dançarinos.

Foi nesse ambiente que conhecemos Socorro, 17 anos, acreana, quando se restabelecia de um aborto. Encantava qualquer um ver aquela morena de cabelos curtos transando pernas em frente às casas noturnas do Roque, tentando pegar um companheiro ao mesmo tempo em que se escondia do camburão da polícia.

Socorro, mocinha pálida, magra, com os peitos tumefeitos de leite, e timidamente escondendo o sorriso com as mãos, contava que se entregava ao mercado do sexo “porque precisava comer.”

Socorro, em foto publicada no jornal “Barranco”

–  Abortei, porque o pai do neném é casado. Como é que eu poderia criar a criança ?” – justificava-se.

Olhando firme nos olhos do repórter, Socorro desabafava:

– Nos dias que passei em casa – morava num quartinho perto do Bar Arapuca – sangrando que nem vaca esquartejada, o fdp não apareceu nem pra me dar um Melhoral [comprimido para dor de cabeça].

Os saudosos jornalistas Jorcêne Martínez e Paulo Queiroz ouviriam depois o mesmo pedido de compreensão que ela fazia a todos os homens arranjados no trottoir:

– Vá com cuidado, moço, faz uns 15 dias que perdi meu filho, eu ainda estou muito dolorida.

Não era raro acontecer mortes maternas no Brasil dos anos 1970, o que infelizmente ainda ocorre nos anos 2000. Por sorte, Socorro escapava de fazer parte dos casos dos casos de mortalidade materna, um grave problema de saúde pública no Brasil.

Daí, fazer sentido a música Amor perfeito [ou: Fruto de nosso amor], escrita em 1973 pelo goiano Amado Batista, atualmente criador de gado bovino. Ela mexeu muito com o sentimento paterno dos frequentadores das pistas de dança naquele período. Batista nasceu em Davinópolis, então pertencente a Catalão em 1951.

Como se fosse uma ode à dor profunda Amor perfeito foi tocada intensamente em rádios e bordéis nos dez anos seguintes ao lançamento, constatei:

Amor perfeito existia entre nós dois
Sem esperar que depois fosse tudo se acabar
Mas neste mundo, que o perfeito não tem vida
Não merecemos, querida, viver juntos e amar
Nosso Senhor para sempre te levou
Nem ao menos me deixou o fruto do nosso amor
Aquele filho seria a nossa alegria
E eu senti naquele dia ser um pai, ser um Senhor
No hospital, na sala de cirurgia
Pela vidraça eu via você sofrendo a sorrir
E seu sorriso aos poucos se desfazendo
Então vi você morrendo, sem poder me despedir

Todas as noites os DJs das boates do Bairro do Roque ecoavavam a voz do romântico Amado Batista

Segundo a Plataforma Integrada de Violência em Saúde, consultada às 11h15 de 7 de maio de 2023 pelo autor deste livro, 433 mulheres morreram em hospitais públicos de Rondônia; outras 24 nos demais estabelecimentos; 95 em domicílio; 51 na via pública! e 28 noutros locais; nenhuma em aldeia indígena. Ao todo, morreram 631 mulheres das 66,8 mil em todo o País.

Segundo o Ministério da Saúde, em 2021, a razão de mortalidade materna alcançou 107.53 mortes a cada 100 mil nascidos vivos. Em 2019, a razão era de 55.31 a cada 100 mil nascidos vivos. Em 2020, foram 71.97 mortes a cada 100 mil nascidos vivos, o que já representou um aumento de quase 25% em relação ao ano anterior.

O Brasil conseguiu reduzir em 8,4% entre 2017 e 2018 a Razão de Mortalidade Materna (RMM), um dos principais indicadores de qualidade de atenção à saúde das mulheres no período reprodutivo. Em 2018, a RMM no País foi de 59,1 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos, enquanto no ano anterior era de 64,53.

Quase quatro décadas depois das primeiras incursões de mulheres aos garimpos do Madeira, este repórter conheceu a massoterapeuta Luciana Belegante, que auxiliou a Congregação das Irmãs Ursulinas em visitas ao entorno do canteiro de obras da hidrelétrica Jirau.

– Na Pastoral da Mulher Marginalizada, auxiliando as Irmãs, assistimos bem próximas ao drama de bolivianas que também se prostituíam ali. Em algumas ocasiões, para conversar com elas, tínhamos que aguardar a conclusão de seus programas. Elas saíam do quarto constrangidas, e aí começava o nosso trabalho.

Luciana relatou a situação em entrevista à rádio FM Rio Madeira no programa Café Notícias Comunidade Mix, de Marco Wolff, em agosto de 2023. Entre outros problemas, ela e as Irmãs Ursulinas constataram casos de gravidez precoce e de doenças transmissíveis.

A área de influência do Madeira cobre 1,42 milhão de km² em três países e compreende cerca de 20% da área da bacia hidrográfica amazônica, a maior do planeta. Dentre todos os tributários do rio Amazonas, nenhum contribui com carga de sedimentos maior do que ele.

Em geral, o garimpo tem código. Funciona igual ao presídio. Ladrão e homicida, por exemplo, não têm vez. Se for bem procurado e descoberto, é morto também. Por isso, a estatística da violência também crescia à beira do rio.

Consumo de drogas em áreas de garimpo originou centenas de prisões; marcas ficaram, em meio a casos de aorto e violência

A droga foi um flagelo no território dourado. Em maio de 2017, durante o 1º Congresso em Dependências Patológicas de Rondônia, o então procurador-geral do Ministério Público Estadual Airton Pedro Marin Filho mencionava os danos culturais, sociais, econômicos e ambientais causados pelo intenso fluxo migratório e pelo ciclo de exploração desordenada de minérios e metais na região.

“Tudo aconteceu diante da deficiência dos serviços públicos ofertados em Rondônia, à época recém-elevada à categoria de Estado.”  “O próprio regime de trabalho nas balsas e dragas instaladas no rio Madeira permitia aos garimpeiros recorrer às drogas para conseguir ficar mais tempo submersos em busca de ouro”, explicava.

Odetinha, assim como ficara conhecida a jovem de Caetité (Alto Sertão baiano), 19 anos outra conhecida das noites no Roque desde que chegara de Cuiabá, trocara a família de pequenos agricultores pela prostituição na zona do Ribeirão do Lipa na Capital mato-grossense, e de lá, com as poucas economias, ficaria à espera do ouro dos garimpeiros.

A pele morena e os olhos verdes, se encontravam bons fregueses, angariavam rivalidade entre as colegas amazônicas. E ao mergulhar fundo na maconha quase definhou. Não gostava de Porto Velho, detestava pagar aluguel e colocava defeito em suas tristes e forçadas escolhas (ou aceitações): “São muito trambiqueiros e pechincham o preço, parece que estão comprando tomate na feira, credo!” – queixou-se um dia.

Uma noite procuramos Socorro, que ainda permanecera um ano circulando no Roque, mas quando fomos atrás de Odetinha, cadê? Havia zarpado da cidade, e até hoje não tivemos notícia se o vício a derrubou, ou dele conseguiu livrar-se. Tomara que sim.

No encerramento de grande parte da atividade garimpeira na década de 1990, lembrava, instalava-se uma crise na região, “o que só acentuou a operação do tráfico de drogas, moeda utilizada para a compra de armas e ouro.”

Nesse cenário, conforme ele descrevia em 2017, “criou-se uma cultura de fornecimento e consumo de drogas”, e assim, dos 9 mil detentos do Estado, 2.441 estavam presos por tráfico. “Em Porto Velho, o berço do problema, o tráfico foi a causa responsável pela prisão de 1.325, do universo de 4.413 pessoas.

Porto Velho foi perdendo ao longo dos anos seus ícones da noite. Alguns deles comandavam casas noturnas que funcionavam desde os anos 1970. Seu José Ferreira, em sua esplêndida Boate Arariboia, teve um trágico fim. Ferreira viajara para Manaus em fevereiro de 1999 no barco Ana Maria VIII, que saíra lotado do cais de Porto Velho com turistas de Curitiba, Chile, Argentina. Itália e Uruguai.

O barco possuía 25m de comprimento, três andares e 17 camarotes. Num deles estava Ferreira, que saíra superlotado, tombou e veio afundar num rodamoinho na Ilha do Boqueirão, a 20 km do porto de Manicoré e a 409 km de Manaus, onde iria atracar.

Nesse acidente ocorrido na noite de 10 de fevereiro daquele ano, 45 anos depois de encerrar as atividades da boate, ele morreu trancado na cabine. Ao todo perderam a vida no acidente 61 pessoas, das quais 18 corpos foram identificados e os outros 43 desapareceram e nunca foram encontrados.

Consta que, ao sair de Porto Velho o dono do barco e sobrevivente Paulo Jorge Fonseca de Oliveira entregou à Capitania Fluvial a relação de mercadorias a bordo: eram 15 toneladas de grãos, verduras e frutas. Segundo sobreviventes, o Ana Maria VIII recebeu veículos automotores ao passar por Humaitá. Estava sem alvará de segurança e anos depois do acidente, indenizações cobradas por familiares ainda estava pendente na Justiça.
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Em 2018, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 442 trouxe à tona o debate sobre aborto no País, reacendendo o assunto na sociedade. A pesquisa nacional de aborto, que é a mais confiável feita por amostragem em domicílios e utilizando a técnica diurna (uma metodologia mais apurada, mais precisa), estima que até chegar aos 40 anos, uma a cada cinco brasileiras terá provocado pelo menos um aborto. Ou seja, uma a cada cinco mulheres, todo mundo conhece 5 mulheres. De acordo com esta pesquisa, realizada em 2016, em 2015 mais de quinhentas mil mulheres praticaram aborto. As evidências demonstram também que os países com legislação proibitiva praticam tantos, ou até mais abortos que os países com legislação mais permissiva. Principalmente as mais pobres e as negras, que têm o risco de morrer em complicações com aborto três vezes mais do que as brancas, com métodos que acarretam sequelas e complicações inadmissíveis, causando hemorragia, infecção, choque séptico e complicações de longo prazo e morte. A estimativa é de que o aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil.
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