RO, Quarta-feira, 18 de junho de 2025, às 18:57







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InfoAmazônia: adjunto da Sedam intermediou venda de fazenda em reserva para própria esposa

Gilmar Oliveira de Souza, secretário-adjunto de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia, atuou como representante na venda do imóvel. Ele também está ligado a uma segunda fazenda ilegalmente sobreposta à mesma unidade de conservação. Indícios de fraudes nas escrituras dos imóveis foram encontradas pelo Incra e pela Procuradoria-Geral do Estado. Caso pode configurar uma das maiores áreas griladas dentro de uma unidade de conservação na Amazônia.

Por: Fábio Bispo

PORTO VELHO – O secretário-adjunto de Desenvolvimento Ambiental do Estado de Rondônia, Gilmar Oliveira de Souza, está envolvido em um caso que pode ser um das maiores grilagens já identificadas dentro de uma unidade de conservação na Amazônia, segundo análise de escrituras públicas obtidas pela reportagem. Em 2018, ele atuou como representante na venda de um imóvel de 47 mil hectares dentro da Reserva Extrativista (Resex) Rio Cautário para sua esposa, Jacqueline Moreno. Pouco antes de assumir o cargo estadual, em 2022, também solicitou autorização para exploração de madeira em outro imóvel, de 45 mil hectares, localizado na mesma área protegida.

As terras ligadas ao secretário-adjunto somam mais de 92 mil hectares — o equivalente a quase nove vezes a área da cidade de Paris, capital da França — e cobrem 60% da unidade de conservação de uso sustentável.

Gilmar e a esposa, Jacqueline Moreno, durante viagem oficial de comitiva da Sedam à China. Imagem: Reprodução/Instagram

Os imóveis foram registrados em cartório como Fazenda Lago Brasil e Fazenda Seringal Rio Cautário nas décadas de 1960 e 1970, e têm origem em uma escritura de 1907 concedida pelo Estado a um empresário seringalista coronel Balbino Antunes Maciel para uma propriedade a mais de 70 quilômetros da Resex Rio Cautário, segundo aponta um laudo do Instituto Nacional de Colonização Agrária (Incra).

No entanto, a localização original das terras do coronel teriam sido fraudadas em 2016 com a inserção de coordenadas geográficas nas escrituras – processo conhecido como georreferenciamento. Com isso, as propriedades foram artificialmente deslocadas para dentro da Resex Rio Cautário. As fraudes foram identificadas pelo Incra e pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE), e teriam como objetivo forjar a existência prévia desses imóveis na área protegida, de modo a simular que já estavam ocupados antes da criação da unidade de conservação, em 1995.

O Incra afirmou que a escritura original foi dividida em vários imóveis, o que “praticamente quadruplicou esta porção em diferentes registros públicos”.

Mesmo assim, as áreas foram registradas como propriedades rurais no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) obedecendo a uma decisão judicial de 2016, que reconheceu a validade das escrituras públicas “à revelia do Incra”, segundo informou o órgão agrário.

Na época, os supostos donos da área queriam criar gado, mas o pedido havia sido negado por ser uma unidade de conservação. Eles entraram na Justiça e apresentaram as escrituras georreferenciadas da área alegando que os imóveis eram anteriores à criação da Resex, em 1995. Em decisão liminar, a Justiça reconheceu a validade das escrituras. Com base nessa decisão, os imóveis foram inscritos no Sigef.

Atualmente, pelo menos 96 famílias extrativistas vivem na Resex Rio Cautário, nos municípios de Costa Marques e Guajará-Mirim, em terras que pertencem à União e foram cedidas ao estado de Rondônia para fins de conservação. As comunidades ocupam a região há mais de um século e detêm o direito de uso coletivo da área demarcada.

Por telefone, o secretário titular da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam), Marco Antonio Ribeiro de Menezes Lagos, disse que não comentaria o caso. “Sobre isso, eu não vou me manifestar pessoalmente, estou entrando de férias hoje. Vou deixar que a Sedam lhe responda”, afirmou.

A reportagem então solicitou esclarecimentos à Sedam sobre o envolvimento do secretário-adjunto com as áreas registradas na Resex Rio Cautário, mas o órgão não respondeu aos questionamentos enviados por e-mail.

Relação de Gilmar com a Lago Brasil 

Em março deste ano, a Justiça Federal bloqueou a matrícula da Fazenda Lago Brasil, de 45 mil hectares, por irregularidades na origem do imóvel. A decisão liminar atendeu a um pedido da PGE, feito após a solicitação de autorização para extração madeireira na área. Segundo o órgão, o estudo de georreferenciamento foi realizado com base em procurações falsas.

Resex Rio Cautário. Foto: Arquivo Pessoal/comunidade local

O nome de Gilmar não é citado nas investigações nem nos pareceres do Incra e da PGE. No entanto, a reportagem identificou sua relação com essas terras por meio de escrituras públicas e documentos oficiais.

Em outubro de 2022, poucos meses antes de assumir o cargo na gestão ambiental do estado, Gilmar atuou como representante da Fazenda Lago Brasil e encaminhou à própria Sedam, onde trabalha atualmente, um pedido para retirar madeira dentro da área protegida.

A Fazenda Lago Brasil foi registrada dentro dos limites da Resex em um processo de usucapião, instrumento que por lei não se aplica a terras federais. Todos os nomes mencionados na cadeia sucessória do imóvel já faleceram — um deles, antigo suposto proprietário, foi condenado pelo assassinato de uma cartorária no Mato Grosso; e o último dono que teria herdado a área teria se suicidado em 2024.

A ação judicial contra o registro da fazenda já acumula 3.507 páginas, incluindo pareceres da própria Sedam que reconhecem que a Resex foi criada em uma terra pública federal, sem registros prévios de propriedades privadas.

Além de atuar como representante no pedido de exploração madeireira, o secretário-adjunto também interferiu em um outro projeto relacionado à área.

Em 2020, a comunidade tradicional da Resex Rio Cautário criou um projeto de crédito de carbono, com o objetivo de receber recursos pela preservação da floresta. O projeto foi autorizado pela Sedam e assinado pelo governador Marcos Rocha (União).

A destinação para geração de créditos de carbono inviabilizou os interesses da Fazenda Lago Brasil, que previa a retirada de madeira e criação de gado na área.

Mas, em 2023, o secretário-adjunto apresentou ao governador uma minuta de projeto de lei que poderia afetar diretamente iniciativas como essa. O texto propunha impedir a atuação direta de comunidades tradicionais em projetos de carbono, proibindo de atuarem como “poder concedente”, e permitir a concessão florestal de unidades de conservação, incluindo exploração madeireira.

A proposta também previa a “garantia de propriedade adquirida antes da criação da unidade de conservação” — ponto central para os imóveis ligados a Gilmar na Resex Rio Cautário. Até o momento, a proposta não foi oficialmente enviada pelo governo Marcos Rocha à Assembleia Legislativa.

Em 2024, o governo de Rondônia decidiu cancelar o projeto de crédito de carbono da comunidade. O caso foi parar na Justiça, onde aguarda julgamento.

Em março deste ano, o governo de Rondônia firmou acordo com o Centro Tecnológico de Portugal para desenvolver um novo projeto de crédito de carbono no estado. Gilmar foi um dos presentes na assinatura do acordo.

À reportagem, o governo de Rondônia informou que a minuta do projeto de lei assinado por Gilmar está em fase inicial de elaboração e é constituída por diversas coordenadorias da Sedam. Sobre as alterações para o reconhecimento de propriedade privada dentro de unidades de conservação, o governo argumenta que a legislação (Lei nº 15.042/2024) “reconhece expressamente a existência e a legitimidade jurídica de áreas privadas como base para a implementação de projetos de geração de créditos de carbono”.

Fazenda vendida para a esposa

No caso da Fazenda Seringal Rio Cautário, que está registrada desde 2018 como propriedade de Jacqueline Moreno, Gilmar aparece como procurador do suposto dono da área na venda para sua própria esposa. No documento em cartório, Jacqueline Moreno declara ter pago R$ 5 milhões pelo imóvel.

Registro do imóvel Fazenda Seringal obtido pela reportagem mostra que Gilmar atuou como procurador para vender uma área na Resex Rio Cautário para a própria esposa. Imagem: Reprodução/Cartório de Imóveis de Costa Marques

O registro da fazenda Seringal dentro de uma unidade de conservação contraria a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc) que estabelece que “as reservas extrativistas são de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais”. Mas, segundo a lei, se o registro do imóvel for legítimo e anterior à criação da unidade, a área deve ser indenizada pelo poder público, permanecendo com os supostos proprietários até a resolução do conflito.

Em 2023, o governo de Rondônia firmou acordo de cooperação técnica com o Exército Brasileiro para a criação da base cartográfica digital contínua do estado. O projeto conta com a participação direta de Gilmar, e servirá como referência oficial para o georreferenciamento das unidades de conservação, incluindo a Resex Rio Cautário.

O governo pediu a destinação de R$ 4,4 milhões do Fundo Estadual de Governança Climática e Serviços Ambientais (Funclima) para o programa. Na época, o secretário-adjunto afirmou que o levantamento vai servir “como base para os georreferenciamentos das Unidades de Conservação do Estado, que realizará melhorias de ações políticas voltadas à infraestrutura e preservação do meio ambiente”.

Em 2023, o governo de Rondônia firmou acordo de cooperação técnica com o Exército Brasileiro para a criação da base cartográfica digital contínua do estado. O projeto conta com a participação direta de Gilmar, e servirá como referência oficial para o georreferenciamento das unidades de conservação, incluindo a Resex Rio Cautário.

O governo pediu a destinação de R$ 4,4 milhões do Fundo Estadual de Governança Climática e Serviços Ambientais (Funclima) para o programa. Na época, o secretário-adjunto afirmou que o levantamento vai servir “como base para os georreferenciamentos das Unidades de Conservação do Estado, que realizará melhorias de ações políticas voltadas à infraestrutura e preservação do meio ambiente”.

Sobre a participação de Gilmar no projeto, o governo de Rondônia afirmou que ela “está vinculada à função exercida na pasta e não representa iniciativa individual ou de natureza pessoal”. Também informou, em nota, que até o momento “não há comprovação formal ou processo administrativo que impute responsabilidade direta ao servidor em questão quanto à prática de grilagem de terras na Reserva Extrativista Rio Cautário”. Segundo o Executivo, qualquer denúncia recebida nesse sentido “será prontamente encaminhada aos órgãos de controle competentes” (leia aqui a íntegra da manifestação do governo de Rondônia).

O Incra informou que todas as certificações originadas da escritura de Balbino Maciel serão auditadas, “devendo ser refutadas as certificações sobre glebas públicas, que caracterizam evidente ‘segundo andar’ registral” (leia a íntegra da manifestação do Incra aqui).

Se confirmadas as ilegalidades, esta seria a maior área de terra grilada dentro de uma unidade de conservação em Rondônia e a quinta maior área em toda a Amazônia registrada dentro de uma área protegida, segundo mostram os dados do Sigef.

Gilmar, ligado a escrituras com suspeitas de fraudes por estudos de georreferenciamento, encabeça projeto do governo para elaborar cartografia de unidades de conservação no estado de Rondônia. Foto: Arquivo/Sedam

O Ministério Público Federal (MPF) informou que não tinha conhecimento do registro da Fazenda Seringal Rio Cautário dentro da Resex. O órgão atua como parte na ação contra a Fazenda Lago Brasil e informou que o desmembramento de áreas em várias escrituras ocorre “para dificultar o rastreamento da legalidade dos títulos originários”.

Questionado se a relação de Gilmar com esses imóveis poderia configurar conflito de interesses, o MPF afirmou que sim. “Nesse caso, o MPF pode representar contra o secretário”, informou a Procuradoria Federal em Rondônia.

Multa ambiental, viagem para China e auxílio emergencial 

Antes de assumir o cargo público na Sedam, Gilmar e Jaqueline Moreno comandaram a Triunfo Madeiras, uma madeireira que acumula mais de R$ 200 mil em multas aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por irregularidades ambientais, como venda de madeira sem documentação de origem, compra de toras sem licença e inserção de dados falsos no sistema florestal da Sedam. Gilmar é citado em ações judiciais como ex-gerente da empresa, enquanto Jaqueline Moreno era sócia.

Além da atividade madeireira, Jacqueline também teve uma propriedade registrada em seu nome para criação de gado no município de Alto Paraíso, Rondônia, ativa entre 2009 e 2018, segundo o Sistema Integrado de Informações sobre Operações Interestaduais com Mercadorias e Serviços (Sintegra). Entre 2020 e 2021, o casal recebeu auxílio emergencial, benefício criado para atender famílias de baixa renda durante a pandemia da covid-19.

Nas redes sociais, Moreno compartilha registros das viagens com o marido. Em uma delas, retirada do ar durante a apuração desta reportagem, ela aparece na China, durante uma visita oficial da Sedam à mineradora asiática Qiyi Mineração.

Questionado sobre a capacidade de Gilmar para conduzir trabalhos na pasta ambiental, o governo de Rondônia destacou, em nota: “Gilmar Oliveira de Souza possui histórico de atuação em políticas públicas no Estado de Rondônia, com envolvimento direto em ações de regularização fundiária, apoio a comunidades tradicionais e desenvolvimento territorial”.

A reportagem tentou contato diversas vezes com o secretário-adjunto, mas ele não atendeu às ligações nem respondeu às mensagens. Segundo a assessoria de imprensa da Sedam, ele estava de férias com a família. Jaqueline Moreno também não atendeu aos pedidos de entrevista.

A reportagem questionou o governo federal sobre a concessão do auxílio emergencial para o casal, mas não obteve respostas até a publicação desta reportagem.

Pressão para reduzir unidades de conservação em Rondônia

Nos últimos anos, o estado de Rondônia buscou legalizar imóveis privados dentro de áreas protegidas com a participação de deputados da Assembleia Legislativa de Rondônia (ALE-RO), agentes do governo estadual e representantes do agronegócio.

Desde 1985, mais de 8 milhões de hectares de floresta amazônica foram convertidos em pastagem e lavoura em Rondônia, segundo dados da rede MapBiomas. Quase toda a floresta que não estava dentro das áreas protegidas foi devastada. A ocupação de unidades de conservação e terras indígenas se tornou a nova fronteira de expansão do agronegócio no estado.

Fonte: InfoAmazonia

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