RO, Segunda-feira, 05 de maio de 2025, às 23:02




GUAJARÁ-MIRIM (IV) – Dom Rey, o francês que se apaixonou pela missão e virou ‘o apóstolo do Guaporé’

Lúcio Albuquerque

GUAJARÁ-MIRIM (RO) – Em 1910 o papa Pio X assinou uma bula concedendo a criação de um bispado na cidade de São Luiz de Cáceres (MT), com abrangência até Santo Antônio do Madeira e, 11 anos depois, ele veio à região. O bispo dom Frei Luiz Galibert foi o segundo a visitar Guajará-Mirim, porque em 1917 Dom Irineo Jofely, bispo de Manaus, fora até ao povoado na fronteira brasileira com a Bolívia, como também o internúcio de La Paz, Dom Rodolfo Caroli já fora ali.

Se não foi o primeiro, nem o segundo, dom Frei Luiz foi o que teve uma recepção diferente, como relata Vítor Hugo, em “Desbravadores”, classificando de “pavorosa” a maneira como os locais foram receber o representante do Vaticano. “Ignorância pavorosa! O grupo recebeu S. Excelência com confetes ou lança-perfumes. Certamente a intenção era boa, mas o ato exterior foi grotesco”.

É COMO IR A ROMA SEM VER O PAPA

Falar de Guajará-Mirim e da religiosidade da nossa “capital da fronteira” sem citar Dom Rey, é como se diz, “Ir a Roma sem ver o Papa”. Nascido em 1902, Pierre Elie Rey nasceu em Fauch (França), lutou na I Guerra Mundial e foi ordenado padre em Albi, tomando o nome religioso de frei Francisco Xavier Rey.

Em 1929, quando o papa Pio XI criou a prelazia de Guajará-Mirim, o sacerdote nascido em Fauch foi enviado para lá, começando então uma ligação quase umbilical entre o Monsenhor Rey e toda a região que seria responsável, 120 mil quilômetros quadrados, na bacia dos rios Guaporé e Mamoré.

Ele veio a partir de Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade, e um motivo que gerou a ligação entre ele e a região foi esse fato: antes de tomar posse na igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, dom Rey conheceu a miséria e o abandono das famílias que viviam nas pequenas comunidades das margens brasileira e boliviana, onde grassavam a ausência do poder público, o analfabetismo e outros fatores contra quem residia ali.

Em seu livro “Memórias de Monsenhor Francisco Xavier Rey, Dom Rey – O apóstolo que se transformou em anjo”, a professora Isabel de Oliveira Assunção tem outra razão para justificar o elo entre o religioso francês e aquelas comunidades. Na viagem antes de Guajará “onde a lancha parava ele descia cumprimentando a todos, abraçava e conversava com as pessoas dando a ente3nder que somos todos iguais”, diz a autora.

Dom Rey chega a Guajará a 23 de janeiro de 1932 e seu primeiro gesto ao descer da lancha foi de grande simbolismo: ajoelhou e beijou o chão. Com ele vieram dois religiosos, Francisco Maria Helail e Teófilo  Arcambal. Do que viu nas comunidades pode ter sido o que o levou a criar o internato “Santa Terezinha”, onde foram estudar meninas filhas das famílias da zona ribeirinha e que, com o tempo, passaram a serem chamadas “filhas do bispo”, todas colocadas sob responsabilidade da senhora Emília Bringel Guerra, a “Dona Pretinha”.

O Internato só seria realizado após a vinda de cinco freiras, da congregação Calvariana e, conforme o escritor Paulo Cordeiro Saldanha, o primeiro grupo de meninas, entre sete e 14 anos foi composto por Paula Gomes, da localidade de Limoeiro, Estela Casara (Laranjeiras), Eremita Cordeiro (Pedras Negras) e Antônia Quintão (Pedras Negras do Guaporé). No total foram 33 meninas, duas delas filhas de dona Pretinha e uma menina moradora  num local à margem da ferrovia.

O projeto da escola, onde as “filhas do bispo” estudariam por quatro anos, era que, depois de concluído o curso, elas retornassem a suas comunidades onde atuariam como professoras, enfermeiras, catequistas e conselheiras. Os pais também contribuíam para que as filhas, mesmo distantes, estudassem, mandando gêneros que produziam em suas lavouras e pomares, enquanto em Guajará-Mirim moradores faziam sua parte, como explica a escritora Isabel Assunção, ela mesma uma das “filhas do bispo”.

Dentre os que ajudavam sempre estavam o coronel Paulo da Cruz Saldanha, o prefeito Boucinha Menezes e o major Aluízio Ferreira, então delegado do governo federal na região. De Aluízio Ferreira veio uma doação importante, é que muitas meninas não tinham calçados, e ele doou  caixas de “conga”, um tênis comum à época. “A maioria das meninas não tinha nem um chinelo para calçar e logfo depois ganhamos um tamanco cada uma, e meias, nunca eu havia usado uma”.

FESTA DO DIVINO

A Festa do Senhor do Divino Espírito Santo”, comumente chamada “Festa do Divino”, uma celebração religiosa surgida em Portugal e que em 1894 foi trazida para o Vale do Guaporé pelos senhores Militão Leite e Bernardino Nery, conforme dona Isabel Assunção, e ela conta que em 1926 um personagem importante da região proibiu a continuação.

Em Guajará-Mirim dom Rey conversou com o proibidor e conseguiu que a Festa retornasse, mas de forma mais organizada – o que me foi dito quando em 2004r fiquei com uma equipe de cinegrafistas e fotógrafos, acompanhando o deslocamento da Festa, com seus símbolos, de um lado a outro do Rio Guaporé.

Um nome muito conhecido da região, o ex-deputado estadual Walter Bártolo, narrou na viagem as mudanças feitas por dom Rey, o que tornou a devoção manifestada no período de sua realização – saída de Costa Marques, onde funciona a Catedral do Divino, no Domingo de Páscoa e chegada ao último ponto na quarta-feira anterior a Pentecostes,  percorrendo 50 localidades dos lados brasileiro e  boliviano.

A Festa do Divino, no entanto – a que sai de Costa Marques – não vai até Guajará-Mirim, porque a cidade fica à margem do Rio Mamoré, chegando só até ao distrito de Surpresa.

HOMEM DE MUITOS INSTRUMENTOS

O francês que se apaixonou pelo trabalho que realizava em sua prelazia, era um “homem de muitos instrumentos”, conforme os autores Isabel Assunção, Tereza Chamma e Paulo Saldanha. Fundou muitas escolas, o primeiro hospital de Guajará (“Perpétuo Socorro”), e muito mais.

Em 1956 iniciou a construção da catedral de “Nossa Senhora do Seringueiro”, inaugurada quase três anos depois. Enquanto acontecia a construção uma questão preocupava dom Rey, conta a escritora Isabel Assunção. “Sua preocupação era quem seria o padroeiro da igreja, e decidiu dedicar a Maria, protetora dos seringueiros, ficou sendo “Catedral de Nossa Senhora do Seringueiro”.

Outra obra muito importante, com apoio de outro religioso, o padre e médico Bendoraites, foi a criação e funcionamento da Rádio Educadora de Guajará-Mirim, colocada definitivamente no ar dia 18 de novembro de 1964.

Dom Francisco Xavier Rey faleceu em Porto Velho no dia 20 de janeiro de 1984, aos 82 anos incompletos.

Lúcio Albuquerque, especial para o www.expressaorondonia.com.br

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