RO, Segunda-feira, 20 de maio de 2024, às 13:17



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Da castanha à dinamite, a sofrida terra Kaxarari

MONTEZUMA CRUZ

Breve relato de uma andança pela terra indígena Kaxarari entre Rondônia, Acre e Amazonas: em 1980 eu estava na Redação do jornal Porantim* em Manaus e fui visitar o padre Cassemiro Beksta. Ele dava aulas no Centro de Estudos de Comportamento Humano (Cenesc), ao lado do casarão do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O sacerdote da Congregação Salesiana nascido na Lituânia me sugeria visitar aqueles índios então esquecidos.

Cassemiro me convencia por todos os motivos, além da justificativa da viagem até a região de Extrema. Fora ele o autor de uma rica cartilha contendo o linguajar desses seres maravilhosos da Amazônia Ocidental Brasileira. Os Kaxaxari falam uma língua da família Pano, semelhante ao idioma dos Yaminawa, Kaxinawa, Yawanawa, Nukini, Katukina e Poyanawa, do Acre.

Três dias após sair de Manaus, de ônibus, conhecia o pároco Zezinho, do Abunã, que me aguardava com dois burros para transitarmos por um varadouro até chegar à aldeia do Igarapé Azul. Segundo o antropólogo Terri Vale de Aquino, esses índios viviam nas aldeias conhecidas por Maloca e Boca da Barrinha.

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O repórter (5º da esquerda para a direita, com seus novos amigos do Igarapé Azul, em 1980.

Os Kaxarari habitam até hoje a divisa entre os estados de Rondônia e Amazonas, nas proximidades da BR-364. Em 1910 ainda multiplicavam-se nas cabeceiras do igarapé Curequeté, afluente do rio Ituxy, e sua população era estimada em aproximadamente 2 mil índios. No entanto, desse período até o início da década de 1980, devido aos violentos ataques de caucheiros peruanos e seringalistas brasileiros, e às epidemias, eles se reduziram a menos de duzentas pessoas.

O resultado dessa viagem entre Manaus e aquela região de Rondônia foram duas páginas de reportagem no Porantim, que na língua sateré-maué significa remo, arma e memória.

Picado por um marimbondo o burro Canário deu um enorme salto e me jogou no meio de um tabocal, ferindo-me das pernas à cabeça. E lá encontrei aquelas dóceis criaturas na simplicidade de suas casas de caboclo, já sob forte influência de seringueiros. Apresentavam-se a cada pergunta que eu lhes dirigia, e ao identificá-los um a um admirei-me das gêmeas Cosma e Damiana, então com menos de três anos de idade.

Banhei-me no Igarapé Azul com alguns deles, hospedando-me numa das malocas. No segundo dia, o padre Zezinho celebrou a missa num altar improvisado à beira da floresta. A cada gesto do religioso, os índios sorriam sem graças uns para os outros. O padre seguia o sermão, a consagração da hóstia, a comunhão e finalizava, abençoando a todos.

Mães com crianças no colo, algumas em amamentação, observavam estáticas ao movimento. Percebi que, apesar de viverem já nos anos 1980, eles não conseguiam ser catequizados.

Pressionados pela chegada de invasores nos anos 1990, esses índios sofreram tal forma que a juíza Jaqueline Conesuque Gurgel do Amaral, da 5ª Vara Ambiental e Agrária da Seção Judiciária de Rondônia dava prazo de 30 dias para que a Funai iniciasse a revisão de uma área de terras** anteriormente fora de seus direitos de propriedade inalienável e, pelo Direito, imprescritíveis. Segundo a Funai, em 1993, perto de 60% da população Kaxarari possuía menos de 20 anos de idade, enquanto 34% situava-se na faixa etária de 20 a 50 anos, e somente 6% era formada por pessoas acima de 50 anos.

O sofrimento deles aumentou, quando devastadores a serviço da empresa construtora Mendes Júnior desembarcaram em suas terras, entre 1988 e 1989. É que o Acre não tem pedras, e a empresa começava a explorar o limite oeste do território Kaxarari numa área de 900 hectares, onde elas eram encontradas em abundância.

Os próprios índios contavam à Funai e à Justiça que fora intencional a demarcação feita em 1987 pela empresa Asserplan Engenharia e Consultoria Ltda. e pela Funai, pois beneficiaria a Mendes Júnior. Ao adentrar ao território indígena essa empresa surpreendeu o povo Kaxarari com uma super equipada tecnologia (incluindo as bombas de dinamite), caminhões, britadeiras gigantes, tratores. Além de tudo, a empresa era bafejada pelos próprios recursos do governo federal, via Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), muito conhecido nestas terras desde o Polonoroeste no início dos anos 1980.

E assim, senhoras e senhores, a empresa produzia em larga escala de pedras e britas para a pavimentação da BR-364 e para a construção civil em Rio Branco, até o negócio ser suspenso pela Justiça.

Se o “progresso” para os brancos acreanos não passava de um detalhe na história, aqueles que sobreviviam do roçado da autossustentação e da coleta de castanhas espantavam-se, atordoados, pelo iminente desastre.

É para chorar mais pelo sangue, suor e lágrimas derramados.
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* A Redação do Porantim ficava na Avenida Joaquim Nabuco 1001, ao lado da Residência Epíscopal em Manaus.

** O cacique Antônio Caibu prestou este depoimento nos anos 1980: 

“Depois que a Funai botou uma Ajudância em Rio Branco e veio aqui no Azul tirar um pedaço de terra pra nós, nós ficamo mais sossegado porque nós compreende agora os nosso direito. Nós fiquemo sabendo que tinha direito a nossa terra, direito nas nossa seringueira e castanheira que tem na nossa terra. Funai prometeu marcar a nossa terra, mas ainda não marcou no terreno. Só marcou no mapa, só marcou no papel. Por enquanto é só promessa, mas nós já sabe que temo direito a nossa terra. Nós queremo marcar logo a nossa terra porque não tá ainda invadida de cariú [não-índio]
.”

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Foto mapa: agb.org

 

 

 






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