RO, Segunda-feira, 19 de maio de 2025, às 14:52






Consulta médica não é mercadoria e não pode ser cronometrada, como os gestores estão tentando impor atualmente – Por: Hiran Gallo

Quando esse processo é apressado, aumenta-se o risco de erros, de omissões e de fragilização da relação médico-paciente

José Hiran Gallo*

PORTO VELHO – Usar um relógio para estabelecer os limites de uma consulta médica pode ser prejudicial para pacientes e profissionais, podendo causar consequências graves e inesperadas ao resultado final de um atendimento, seja na rede pública, seja na privada ou suplementar. Em jogo, estão a integridade, a saúde e a vida dos pacientes e a confiança e a credibilidade de médicos e até da medicina.

O tempo do atendimento ao paciente não é apenas uma questão de minutos, mas de responsabilidade, ciência e humanidade. Cada consulta é única: envolve escuta, avaliação, diagnóstico, explicações, acolhimento, tomada de decisões e, acima de tudo, respeito à complexidade da vida humana.

A tentativa de padronizar esse processo com o uso de um cronômetro, como vem sendo proposto ou já aplicado em alguns locais, é reduzir o ato médico a um protocolo insensível, contrapondo-se à prática ética, segura e eficaz da medicina que lhe são inerentes. Trazer luz a este tema é a proposta dessa breve reflexão, elaborada com bases em normas vigentes e balizadoras ao exercício da profissão médica.

Do ponto de vista técnico, ético e legal, o tempo da consulta deve ser aquele necessário para cumprir o que médico precisa fazer para atingir o foco de sua missão: o bem-estar do paciente, conforme previsto no Código de Ética Médica. Esse é um consenso definido pelas entidades que normatizam essa profissão.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), bem como vários Conselhos Regionais de Medicina (CRMs), tem reiteradamente afirmado que a duração da consulta não pode ser fixada por gestores, planos de saúde ou sistemas que priorizam metas de produtividade.

Isso está claramente estabelecido na Resolução CFM nº 1.958/2010. Este texto reitera que o atendimento médico deve respeitar o tempo necessário para adequada anamnese, exame físico, formulação diagnóstica e plano terapêutico. Esse entendimento é amplamente respaldado por pareceres técnicos emitidos por conselhos regionais de medicina.

Desse escopo apresentado na forma de resoluções e pareceres, depreende-se que não existe um tempo mínimo ou máximo para uma consulta médica. A inexistência desse parâmetro decorre da diversidade de quadros clínicos, da individualidade dos pacientes e da necessidade de atenção integral, que exigem respostas diferentes dos profissionais.

Pareceres como o 14/2016, do CFM; o 68/2024, do CRM-MG, e o 2.926/2024 do CRM-PR deixam claro que é o médico, com base em sua autonomia profissional e nos princípios éticos da profissão, quem deve avaliar quanto tempo é necessário para conduzir cada atendimento com segurança.

Segundo esses pareceres, para que isso ocorra, durante a consulta médica, o médico precisa de condições para ouvir o paciente com atenção, investigar o histórico clínico, realizar o exame físico, solicitar ou analisar exames complementares, discutir possibilidades terapêuticas, orientar o tratamento e esclarecer dúvidas.

Quando esse processo é apressado, aumenta-se o risco de erros, de omissões e de fragilização da relação médico-paciente. Em consequência, ficam sob risco de comprometimento a qualidade do diagnóstico e do tratamento, violando os princípios básicos da boa medicina.

Qualquer tentativa de estipular o tempo da consulta (mínimo ou máximo) por meio de normas administrativas ou políticas públicas configura violação da autonomia do ato médico, conforme reconhecido em pareceres como o 2.645/2018, do CRM-PR. Por este documento, a determinação externa de tempo de consulta fere a ética médica e configura ingerência indevida na prática da medicina, o que contraria dispositivos constitucionais que garantem o livre exercício das profissões regulamentadas.

Caso o médico se veja pressionado por gestores (públicos ou privados) a atender pacientes em prazos inadequados, ele deve agir para proteger o seu ato profissional e os interesses dos seus pacientes. Isso é o que mostram os pareceres 2.646/2018 e 2.372/2012, também do CRM-PR, que testemunham como essas autarquias regionais têm se posicionado contra políticas de gestão que reduzam o tempo de consulta a uma métrica de desempenho.

Se o médico se vê diante de uma situação desse tipo, sugere-se documentar em prontuário os prejuízos causados pela imposição e buscar apoio do seu CRM, que estão prontos para acolher denúncias, emitir pareceres técnicos e, se necessário, acionar o Ministério Público para impedir práticas que coloquem em risco a saúde da população e o ético exercício da profissão.

Em contextos assim se fortalece o papel dos conselhos de medicina, pois atuam na defesa da autonomia do médico, na fiscalização de condições adequadas de trabalho, no esclarecimento de condutas éticas e na produção de normativas que protejam a relação médico-paciente. São os conselhos que asseguram que o cuidado à saúde não seja tratado como parte de uma linha de produção, mas como uma atividade que exige conhecimento, empatia, atenção e responsabilidade.

*É presidente do Conselho Federal de Medicina
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