RO, Domingo, 19 de maio de 2024, às 3:11



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Concentração de mercúrio no rio Madeira prejudica desenvolvimento neurocognitivo de crianças

RONDÔNIA – Um estudo realizado com 263 crianças de comunidades ribeirinhas de Rondônia associou níveis de mercúrio no cabelo dos participantes a um menor desempenho em testes de funções neurocognitivas. Publicada no periódico Neurotoxicoloy, a pesquisa foi feita com crianças em idade escolar (de 6 a 14 anos) da região do rio Madeira, um dos principais afluentes do rio Amazonas. Nela se refere que o tóxico é consumido em forma de metilmercúrio (MeHg) nos peixes.

Foto: Carlos Araújo

As crianças com maiores níveis de mercúrio no cabelo tiveram pior desempenho em tarefas neurocognitivas. A cada 10 μg/g a mais no nível de mercúrio, o desempenho diminuiu meio desvio padrão em quociente de inteligência (QI) verbal, escores de QI estimados, conhecimento semântico, fluência verbal fonológica e memória operacional verbal e visuoespacial (análise controlada por idade, sexo e educação materna).

As habilidades cognitivas são um conjunto de habilidades aprendidas em diferentes graus, conforme um indivíduo cresce e se desenvolve mentalmente. … Alguns exemplos de habilidades cognitivas incluem habilidades motoras, memória, atenção, percepção e uma categoria ampla conhecida como habilidades executivas. As funções cognitivas têm um papel fundamental no processo cognitivo e trabalham em conjunto para que possamos adquirir novos conhecimentos e criar interpretações. Algumas das principais funções cognitivas são: percepção, atenção, memória, pensamento, linguagem e aprendizagem

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De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o valor de referência para níveis aceitáveis de mercúrio em humanos é de até 2 μg/g. Embora a mediana da população do estudo tenha sido próxima a este valor (2,05 μg/g), metade da amostra apresentou níveis acima do ponto de corte para risco à saúde humana. E 25% das crianças apresentaram níveis que variaram de 4,03 μg/g a 21,75 μg/g, o que significa que um grande grupo apresenta níveis de exposição muito superiores ao recomendado pela OMS.

“Um grupo de crianças tinha níveis aceitáveis de mercúrio, mas outras tinham até 10 vezes acima do ponto de corte, e isso traz um efeito negativo para a cognição em funções especificas”, disse ao Medscape o primeiro autor da pesquisa, Cassio dos Santos Lima, que é doutorando da Universidade Federal da Bahia (UFB). A pesquisa foi coordenada pela professora Sandra de Souza Hacon, da Escola de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) vinculada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, e teve a participação de especialistas da UFB, Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Pontifícia Universidade Católica Do Rio De Janeiro (PUC-Rio) e Fiocruz RJ.

O Dr. Carlos Fernando Collares, médico e professor-assistente da Maastricht University, nos Países Baixos, que não participou da pesquisa nem da revisão dela, mas atua como revisor do periódico Neurotoxicology, disse: “Este trabalho tem o mérito de revisitar um problema importante, mas negligenciado. Um trabalho hercúleo, confirma o que se sabe e traz mais evidências. A parte estatística poderia ser melhor, mas com o que foi publicado já é possível ter um panorama da gravidade da situação. A toxicidade do metilmercúrio e de outros agentes neurotóxicos costuma ser insidiosa. E o trabalho tem o grande mérito de colocar uma lupa sobre o problema.”

Da terra à mesa

O solo da Amazônia brasileira tem altas concentrações de mercúrio de origem natural. Além disso, na década de 80, cerca de 300 toneladas deste elemento químico foram despejadas no rio Madeira devido às atividades de mineração. Historicamente, a exploração do ouro sempre ocorreu de forma irregular, e o mercúrio utilizado no garimpo acabou sendo perdido no ambiente, onde é bio-transformado em MeHg. Não é de hoje que este elemento chega aos peixes, que são a principal fonte de proteína animal da população ribeirinha.

A relação entre exposição ao mercúrio e danos neurológicos está bem estabelecida na literatura, e há estudos prévios com crianças expostas ao MeHg por meio do consumo de peixes associados a reduções significativas na inteligência, memória, atenção e processamento visuoespacial. Os dados obtidos na pesquisa feita com a população acerca do rio Madeira coincidem com os de pesquisas anteriores com as populações dos rios Tapajós e Amazonas. Os resultados eram, de alguma forma, esperados.

“A exposição ao mercúrio é um problema mundial”, explicou Cassio. “A OMS tem diretrizes sobre o impacto do mercúrio na saúde, que ocorre de forma diferentes nos diferentes locais. Na região amazônica, que é cortada por rios, a ingestão de peixe é a caraterística mais marcante.”

O pesquisador, que avaliou os dados para a sua tese de mestrado, coordenou as atividades de campo junto com uma equipe local em Porto Velho. A equipe ia até as comunidades e, diante da autorização dos pais/responsáveis, fazia a avaliação nas escolas. O resultado foi entregue pessoalmente em cada casa, junto com uma orientação nutricional.

O rio Madeira tem mais de 1.000 espécies de peixes, e as equipes ensinaram aos moradores quais tipos de peixe podem ter menos concentração de mercúrio. O trabalho pedagógico incluiu a recomendação de ingerir menos peixes de couro, e manter apenas uma ou duas vezes por semana o consumo de peixes carnívoros. “Sabemos que as condições das famílias não permitem mudar a diete, mas é possível fazer a alternância”, disse Cassio.

Indígenas

O trabalho no rio Madeira não determinou se se tratava ou não de população indígena. “É população ribeirinha reassentada”, especificou o pesquisador. Mas a Fiocruz já chamou atenção para a contaminação por mercúrio de mulheres e crianças de aldeias indígenas do Amazonas.

A avaliação da exposição dos ianomâmis ao mercúrio foi um pedido das próprias lideranças locais, que desconfiaram da contaminação dos moradores dessa região devido à proximidade aos pontos de garimpo de ouro. De acordo com o estudo que analisou amostras de cabelo de quase 300 indivíduos (134 mulheres adultas e 144 crianças), 56% dos indígenas apresentaram concentrações de mercúrio acima do limite estabelecido pela OMS e 4% apresentaram concentrações acima do limite para o surgimento de efeitos adversos à saúde (6 μg/g). O valor máximo (13,87 μg/g) foi detectado na amostra de cabelo de uma criança de três anos.

As pesquisas continuam, e o histórico de exposição ao mercúrio vai ser estudado aproveitando uma caraterística cultural indígena: O cabelo mais próximo da raiz reflete a exposição recente, mas as mulheres deixam o cabelo muito comprido. Outros estudos demonstram que a população urbana da região amazônica também possui níveis altos de mercúrio no organismo.

Discrepâncias

Os resultados brasileiros estão de acordo com os obtidos em estudos de coorte das ilhas Faroé, no Atlântico Norte, mas contrastam com um estudo de coorte feito nas ilhas Seichelles, no Oceano Índico, que não encontrou associação entre os níveis de mercúrio e os testes neuropsicológicos. Os autores reconheceram que são necessários mais estudos avaliando os níveis de MeHg nos peixes e seu consumo na região do rio Madeira para entender essas diferenças.

Outros pesquisadores destacaram que, para avaliar adequadamente a associação entre o neurodesenvolvimento e a ingestão de peixes, deve ser aplicado um questionário detalhado sobre a frequência alimentar. Em segundo lugar, eles ressaltaram que é difícil avaliar o desenvolvimento cognitivo na infância, porque há mudanças rápidas no desenvolvimento do sistema nervoso central, e os resultados variam dependendo do tempo de avaliação e dos efeitos de diferentes fatores ambientais. A avaliação repetida desde a primeira infância até a idade escolar seria aconselhável para superar as diferenças individuais em trajetórias neurocognitivas e detectar efeitos tardios.

O Dr. Carlos Fernando acrescentou que o trabalho publicado tem problemas na parte estatística: “Eles transformam a principal variável independente (Hg no cabelo), que é contínua, em descontínua, dividindo-a em quartis e usando o quartil superior para realizar suas asserções e conclusões. Dicotomizar ou politomizar variáveis contínuas, não faz parte das boas práticas de pesquisa, pois pode levar à resultados bem diferentes e paradoxais em comparação com a variável contínua original.”

O Dr. Carlos Fernando fez questão de ressaltar que não discute a neurotoxicidade do metilmercúrio, “que existe e é bem evidente”, mas a abordagem quantitativa utilizada pelos autores para mostrar uma diferença significativa. “Em vez de buscar resultados estatisticamente significativos por meio de um P de valor baixo, teria sido mais interessante utilizar uma série de regressões lineares, ou mesmo uma MANOVA para que, em vez da significância, as magnitudes de efeito (effect sizes) falassem por si. Felizmente, a regressão linear múltipla foi realizada. Houve uma transformação log 10 dos níveis de mercúrio, mas isto foi necessário para que os dados obedecessem aos pressupostos da regressão linear múltipla.”

O Dr. Carlos Fernando também destacou outros pontos faltantes na publicação, como a falta de detalhamento sobre o processo de controle por sexo, idade e nível educacional materno.

“Idealmente, outros preditores entram na própria regressão e os valores dos coeficientes são analisados em conjunto. Além disso, valores de Psignificativos em regressões não bastam. É preciso que os autores digam o percentual de variância explicada em cada regressão. Regressões com resultados significativos, mas com pouco percentual de variância explicada, não costumam ter tanta relevância clínica. Fomos privados dessa informação. Eu sugiro fortemente ao time de autores que publique os dados anonimizados deste estudo para que outros autores possam realizar análises independentes, com outras abordagens analíticas.”

Em pesquisas futuras, os fatores genéticos também devem ser levados em conta, uma vez que pode haver uma predisposição genética à neurotoxicidade do MeHg, mesmo em níveis baixos. De fato, alguns polimorfismos foram associados a um aumento da suscetibilidade ao MeHg, enquanto outras variantes são capazes de proteger contra eventos adversos.

Mesmo com as críticas metodológicas, há consenso em aceitar o problema da neurotoxicidade do metilmercúrio na alimentação e seu efeito em funções neuropsicológicas cruciais. Esta deficiência poderia se potencializar com as consequências de outras caraterísticas que as populações ribeirinhas reassentadas e indígenas têm em comum, como a vulnerabilidade social.

Na Amazônia, se teme que os efeitos da exposição alimentar ao mercúrio comprometam ainda mais o futuro.

 

Dr. Carlos Fernando Collado e Cassio dos Santos Lima informaram não ter conflitos de interesses relevantes. A pesquisa foi financiada por uma subvenção da Usina Hidrelétrica Santo Antônio – Avaliação de Impacto em Saúde de projetos de desenvolvimento na Amazônia, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e INOVA ENSP 2015.

 

 

 

 

 

Fonte: Painel Político com informações de Medscape






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