
Fiz três viagens pelo Rio Juruá nas derradeiras duas décadas. Vi o esforço dos pilotos de canoas e barcos para desencalhá-los entre Marechal Thaumaturgo e o Lago Ceará, na Reserva Extrativista do Alto Rio Juruá, no Acre. Um dos 20 maiores rios do mundo, ele tem seu período de cheia que desabriga pessoas, mas seca todo ano. São situações que expõem a verdadeira face da Amazônia onde as águas carregam sedimentos e galhos de árvores. Há trechos assoreados.
A viagem de 2009 foi especial: pelo menos dez vezes a lancha voadeira parou. Seus condutores se revezaram numa espécie de via-sacra aquática sem altar, exigindo muita paciência para chegar ao Lago do Ceará, alcançado pelos rios Amônia e Juruá. Na seca, só canoas com motores de rabeta viajam normalmente. Seus pilotos sabem que não serão prejudicados. Tanto vencem trechos com menos de meio metro d’água, quanto os “encachoeirados”, próximos a pedras e onde a profundidade alcança dois metros e a correnteza pode provocar acidentes.
Dias antes, eu havia visitado um fabricante de canoas na cidade de Rodrigues Alves, marceneiro de mão cheia, especializado em produzir a embarcação movida a motores de popa e de rabeta. Ele utilizava a madeira maçaranduba (espécie Manicara), muito resistente.
É de 60 litros o consumo de óleo combustível numa lancha na viagem de ida e volta entre o porto de Thaumaturgo e a Resex do Alto Rio Juruá. Nossa lancha levou um tambor reserva de 20 litros. A área portuária da cidade possui três pequenos embarcadouros, onde se adquire óleo.

Com as curvas povoadas de praias, tem-se a impressão que os 40 quilômetros do percurso se transformam em quase cem. O vaivém de canoas levando bebês, crianças e adultos incorpora-se à paisagem. Entre eles são intercalados colchões, malas, baldes, gêneros alimentícios e o que mais for possível transportar sob o mormaço ou debaixo de chuva. Os mais cuidadosos não ligam o motor sem levar uma lona para cobrir as “traias”.
No trecho entre a sede do município e a Resex são bem visíveis nos barrancos os buracos feitos por caranguejos. Parece um tabuleiro. Bois e vacas descem de uma altura de dez a 30 metros até as praias, ali permanecendo até o entardecer. Alimentam-se no viçoso capinzal. Pena que perdi meu arquivo do Juruá, com fotos desses animais em plena praia.
Perto do rebanho veem-se árvores imbaúbas, uma ao lado da outra. Elas nasceram e cresceram assim. Na beira da água há marrecos, urubus e garças brancas. No alto das árvores, ninhos de japiim, um pássaro conhecido pela imitação do som de outros, entre os quais, periquito, arara, tucano e capitão-do-mato.

A voadeira não vence duas mini-cachoeiras em trechos de correnteza. No período de seca, os pilotos têm que descer e puxá-la por cordas. Foi o que ocorreu nesta viagem, com os jovens Marlon da Silva e Átilon Pinheiro. A lancha deixou de navegar e precisou ser arrastada. “No inverno é bem mais fácil”, garante Pinheiro.
A cada curva de rio, a cada quilômetro de praia, galhadas e troncos surgem à frente. Estão ali inertes, há muitos anos, atrapalhando a navegação de canoas, barcos, lanchas voadeiras e dos batelões. A cena é semelhante ao “cemitério” de troncos submersos em lagos de hidrelétricas.
Galhos, areia e pedras danificam as hélices das embarcações. Potência não conta nessas viagens. Só os motores de rabeta dois tempos ou quatro tempos obtêm êxito.
Se alguém conseguisse retirar das águas galhos e árvores inteiras liberados do alto dos barrancos, teria um estoque de lenha suficiente para alguns anos. Ninguém, nem o poder público se interessa por essa lenha. A lenha levada pela correnteza se espalha por quilômetros nos leitos obstruídos dos rios Amônia e Juruá.
E não é que, à noite, o piloto Marlon da Silva se revela um pé-de-valsa – ou pé-de-xote, dançando à vontade com todas as meninas e mulheres do lugar? Contou-me que elas eram “amigas, primas ou sobrinhas”. O baile é improvisado numa sala na sede da Resex e num dos quartos da casa de madeira.
Amanhece o domingo e o som de um CD repete bregas dos anos 1970 e 80. São 6h30: o sol penetra na neblina que ainda cobre lavouras de fumo e feijão, pomares, escolinha, casas, e os abrigos de bois, cabritos, porcos e ovelhas. Alguns dançarinos reclamam do fim da festa, outros reclamam e se deitam no assoalho do casarão de dona Aida Guimarães, o ponto de encontro das famílias deste canto da Resex.
Visitantes e moradores caminham até a beira do rio para a despedida. Já sabem que lanchas voadeiras não terão vez, mesmo com potentes motores-de-popa. Para vencer as distâncias, devagar e sempre, vale muito mais a pequena hélice da rabetinha, girando feito cata-vento.
– Aqui é assim mesmo, toda vez que seca. A gente se acostuma a fazer o povo descer, enquanto a gente puxa ou empurra, principalmente lanchas – comenta o sorridente Marlon, sem demonstrar o mínimo estresse com a profissão. Se ele não saiu do Acre, deve estar lá até hoje, socorrendo seus passageiros.
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Foto principal: Alexandre Cruz/A Gazeta do Acre