RO, Sábado, 18 de maio de 2024, às 20:03



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A Justiça Militar e a tortura

LÚCIO FLÁVIO PINTO

Dois generais de exército, de quatro estrelas, já na reserva, depois de longa e intensa carreira, discutiam, em debate de alto nível, naquele ano de 1976, 12 anos depois da derrubada do político que era então presidente da república, eleito pelo povo, o fazendeiro gaúcho João Goulart, se o Superior Tribunal Militar, que integravam, era realmente um tribunal de justiça ou um tribunal de segurança nacional logo, um tribunal de exceção.

O general Rodrigo Octávio, então ainda ativo na defesa do golpe militar, por ele considerado uma revolução, sustentava que o STM, na apreciação de processos de presos políticos, se portava como um tribunal de segurança. Já o general Augusto Fragoso, um reconhecido intelectual do exército, apesar de admitir o cometimento de ilegalidades na instrução dos processos submetidos à corte, ainda a considerava um autêntico tribunal de justiça.

Estava em questão um dos casos mais rumorosos até aquele momento: a cassação do deputado oposicionista (e jornalista) Márcio Moreira Alves, por um discurso no plenário da Câmara Federal (no horário do pinga-fogo, de discursos rápidos, apresentados, mas nem todos lidos), enquadrado como crime pela lei de segurança nacional. O deputado foi acusado de provocar animosidade da sociedade contra as forças armadas.

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A Câmara, por maioria de dois terços dos seus integrantes, negou licença para a cassação do mandato. O governo reagiu baixando o AI-5: colocou o parlamento em recesso, cassou mandatos e suspendeu direitos políticos, além de garantias civis, pondo fim a todas as liberdades públicas e pessoais.

Oito anos depois, o recurso contra o ato ainda tramitava pela justiça militar. Mesmo Fragoso e Octávio não divergiam num ponto: o deputado fizera o pronunciamento resguardado por sua imunidade, mantida mesmo com a vigência da constituição de 1967. A possibilidade de cassar um parlamentar nessas condições foi introduzida pela emenda constitucional de 1969, que destruiu de vez o que remanescia de liberal e democrático da constituição de 1946.

Seus mecanismos draconianos, entretanto, não podiam retroceder contra o réu, por determinação legal ainda em vigor. Só através de um ato de força. Como militar, o general Rodrigo Octávio apoiou e continuava a apoiar a punição. Mas se o fizesse como juiz, estaria maculando sua função. Daí definir o STM como um tribunal de segurança nacional e não de justiça.

Parte desse debate está contido nas 10 mil horas de gravações a que o historiador Carlos Fico, um dos maiores especialistas em militares do país, teve acesso nos arquivos do STM. Apenas 37 minutos dessas gravações foram revelados pela jornalista Miriam Leitão na sua coluna em O Globo. Logo, todo material estará disponível para consulta pela internet, prometeu o historiador.

É bom para todos, inclusive para as forças armadas, que essas gravações se tornem públicas. Constituem a mais preciosa documentação que sobreviveu desse período como fonte primária para reconstituir a sua história. Os pronunciamentos dos generais das três armas, na condição de juízes, honra as melhores tradições do exército, da marinha e da força aérea.

Mesmo os oficiais superiores, que manifestaram dúvida ou descrença sobre as torturas relatadas pelos presos políticos, revelam o quanto os membros dessa posição desceram de nível e empobreceram a defesa de suas ideias, sob a emulação de um péssimo militar, como o tenente (capitão da reserva) Jair Bolsonaro. A recuperação das sessões do STM em torno dessa fase da história brasileira abre uma cunha vigorosa nas falsificações e manipulações históricas, que ainda prevalecem como versão oficial.

Nenhum dos juízes militares possui alguma ligação com a esquerda ou a oposição ao regime militar. Nomeados por generais que ocuparam a presidência da república, todos apoiaram ou participaram do golpe de 1964. Um dos mais duros, o general Rodrigo Octávio (com quem conversei algumas vezes quando chefiou a 8ª região militar, em Belém) declara, numa das suas intervenções, que as forças armadas “não podem responder pelos abusos, ignorâncias e maldades de irresponsáveis que usam a tortura por limitação cerebral”.

O almirante Júlio de Sá Bierrenbach, se colocando do lado dos militares e policiais que combatiam a subversão, defendeu os adversários do regime que, depois de presos, “têm a sua integridade atingida por elementos covardes, na maioria das vezes de pior caráter do que o encarcerado”.

Os generais mostraram sensibilidade para casos de barbárie de que foram vítimas alguns dos réus que depuseram nos processos, mesmo só tendo acesso aos autos que lhes chegavam, tendo por base inquéritos policiais. Como o de Nádia Maria do Nascimento, presa em 1974, apenas por ser mulher de um militante do MR-8, José Roberto Monteiro. que sofreu “torturas e sevícias das mais requintadas”. segundo Rodrigo Octávio. Submetida a choques elétricos na vagina, quando presa no DOI-Codi, Nádia abortou a criança de três meses que trazia no ventre.

Esses documentos talvez ajudem a dar consequência a uma aspiração nacional: tortura, nunca mais!






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