Montezuma Cruz

Cansada da escassez de água na estiagem do verão rondoniense, três anos atrás minha vizinha furou um poço no quintal. Infelizmente, a exemplo de outros tantos no centro e na periferia porto-velhense, o dito cujo dista menos de 20 metros da fossa séptica. Este repórter, sobrevivente à maior pandemia do século, fica a observar o destino da saúde das pessoas. Feito caranguejos, recuamos ao sabor dos holofotes políticos.

Gerações que viveram ou souberam da existência do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), aquele mesmo concebido durante o período ditatorial no País, devem ter réstias de saudade. Ele fora gerido pelo extinto Banco Nacional de Habitação (BNH), que aplicava recursos próprios e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

O governo financiava a instalação ou melhoria de sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Os recursos eram encaminhados para as companhias estaduais de saneamento básico, criadas à época. Ou seja, apenas os municípios que haviam concedido os serviços para essas empresas eram beneficiados com o plano.

Cenário comum em Porto Velho, onde a população tem até hoje relação de amor e ódio com a Caerd

Ontem, dia 3, em sessão ordinária, a Câmara dos Deputados aprovou mais um pouco a agonia e o sufoco de nós todos. Passou por lá o projeto decreto legislativo que suspende dispositivos de dois decretos presidenciais de regulamentação do novo marco do saneamento básico, assunto que agora irá ao Senado.

O texto é um substitutivo do deputado Alex Manente (Cidadania-SP) para o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 98/23, de autoria do deputado Evair Vieira de Melo (PP-ES), ao qual estão apensados outros 11 PDLs sobre o mesmo tema. Esses decretos editados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no início de abril deste ano revogam outras regulamentações editadas em 2020 e 2021.

Segundo os autores e deputados defensores da suspensão, o decreto permite a regularização de contratos atuais que deveriam ser extintos sem possibilidade de renovação, impedindo a realização de licitação para a contratação do serviço. De sua parte, defensores da regulamentação argumentam: ela beneficia cidades pequenas que não seriam de interesse de empresas privadas na montagem de blocos de municípios para a prestação regionalizada.

Assim dizendo, o Planasa incentivava a regionalização da prestação dos serviços de água e esgoto, uma vez que as companhias estaduais, apesar de firmarem contrato com os municípios, quando formalizavam,  operavam sistemas interligados – que não viam limites políticos – e adotavam estrutura tarifária única. Isso viabilizava a prestação dos serviços por meio do subsídio cruzado.

Meus leitores bolsonaristas ou lulistas, lembrem-se que a concepção do Planasa partiu de cabeças inteligentes, talvez um pouquinho mais do que a dos vorazes e briguentos parlamentares de grande parte de uma safra de aura asquerosa.

Os anos foram passando e nós, pelo menos, aqui na Amazônia Ocidental Brasileira, não dispomos de 10% dos lares totalmente abastecidos de água e ruas com esgotamento sanitário.

Em 2020, o novo marco legal (Lei n° 14.026/2020) previu que a alocação de recursos públicos federais seria condicionada à estruturação de prestação regionalizada e a sua respectiva adesão pelos titulares dos serviços de saneamento. Evidentemente, isso representa o incentivo à regionalização tal qual um dia concebeu o Planasa.

Sem mais delongas: essa vergonha é vista desde as margens do Rio Madeira às mecas do consumo

Claro, o leitor já me questiona: mas era outro Brasil, com menos gente. Resposta rápida: passávamos dos “90 milhões em ação/pra frente Brasil/do meu coração”.

O antigo Planasa foi um sucesso quando observamos a expansão da rede de água. Obviamente, se não houvesse tanto endividamento de empresas estaduais para com a própria Previdência Social, as dores seriam menores.

Em Porto Velho, a expansão da rede se configura morosa, perdendo para a nova estação rodoviária, que felizmente sai do papel.

Na década de 1980, o atendimento urbano de abastecimento de água no País alcançou 80% da população – meta do plano. Ocorreu que, o principal ponto de crítica ao plano da década de 70 referiu-se ao fato de não haver alcançado a autossustentação dos serviços.

Especialistas afirmam que a política tarifária centralizada pelo governo federal indevidamente reduziu as tarifas, a fim de combater à inflação. Também lamentou-se que os fundos estaduais, fonte de recursos do setor, não evoluíram. Empresas se tornaram devedoras, Caerd entre elas. A privatização foi parar no Poder Judiciário.

Enquanto os homens se engalfinham no Plenário, as cidades se estrepam e chafurdam em doenças

Embora acontecesse expansão na rede à época, as tarifas não foram suficientes para remunerar o investimento e assegurar a viabilidade do serviço. Do que poderíamos ter aprendido a lição segundo a qual uma adequada regulação é essencial para garantir a sustentabilidade do serviço – no curto e longo prazo.

Voltando ao Plenário de Suas Excelências: apesar do Sr. Lira não presidir a sessão, o vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos), afirmou que o assunto seria votado por orientação do alagoano.

Alagoas, estado tão sofrido quanto Rondônia, apesar de suas águas marítimas tão badaladas e visitadas.

Caminhemos então para mais de quatro décadas depois: o que virá, além do ego, do falso moralismo e da inépcia de grande maioria da classe parlamentar brasileira?
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Fotos: atual10.com.br, conceptualhouseplans.com, tratamentodeagua.com.br

Em tempo:
Bato em retirada por alguns dias, para visitar filhos e netos em Goiânia e Brasília (DF). No caminho, com certeza, encontro água de aquífero e esqueço um pouco as mazelas de Porto Velho.

Plenário da Câmara dos Deputados, sessão ordinária de 3 de maio de 2023. Mais um passo atrás.

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